A um auditório com público minguado no Memorial da América Latina, a cantora e ativista contra o aborto Zezé Luz se apresenta como mãe de duas filhas, das quais “uma está no céu” devido a um aborto provocado décadas atrás após uma gravidez causada por estupro.
“Luto contra a prática do aborto, por ser o que é, o assassinato de um ser humano indefeso inocente. Respeito quem pensa diferente, mas eu sei as dores, os traumas e tudo aquilo que passei por ter praticado esse aborto”, diz, antes de emendar uma canção em que diz que só estava ali porque alguém “me deixou nascer, não pensou em me matar”.
No palco, ao lado de Zezé, está a secretária estadual de Política para Mulheres, Sonaira Fernandes (Republicanos). Ela é a organizadora do evento Una-se Mulher, que teve entre as convidadas ativistas conhecidas por posicionamentos contrários ao aborto mesmo em casos previstos pela lei.
Num momento em que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), é criticado por parte da base por medidas como a sanção à maconha medicinal ou por dar espaço demais ao grupo de Gilberto Kassab (PSD), Sonaira, antifeminista e antiaborto, mantém aceso no governo o chamado bolsonarismo raiz.
Nas redes, ela destoa do governador por se posicionar sobre os mais variados assuntos que mobilizam a base radicalizada do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A pasta de Sonaira teve momento de visibilidade na última semana, quando foi realizado o Una-se Mulher. O evento ganhou holofotes pela participação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que lembrou a trajetória dela como funcionária do gabinete dele após terem trabalhado juntos na Polícia Federal.
A ascensão de Sonaira na política foi uma aposta da família Bolsonaro e, como vereadora paulistana eleita em 2020, ela não decepcionou os padrinhos. Apresentou projetos contra máscaras anti-Covid e a discussão sobre sexo em escolas.
Ao assumir o cargo na gestão Tarcísio, ela chegou a dizer que o trabalho teria uma dimensão “extremamente diferente”. Por ora, Sonaira continua a Sonaira de sempre.
Ela teve seu momento mais polêmico na gestão com uma publicação sobre saúde, ao compartilhar nas suas redes sociais questionamento à importância do uso de máscaras contra a Covid-19.
Para a cientista política Maria do Socorro Braga, da UFSCar, a atuação de Sonaira contempla a bolha bolsonarista.
“É como se ele [Tarcísio] tivesse deixado para ela esse movimento no sentido de atender as demandas do segmento bolsonarista que se sente não contemplado”, diz. “Um está tendo uma atuação mais generalista, afinal foi eleito por um eleitorado maior que o bolsonarismo. Ela atuaria para um grupo específico”, completa.
A postura de Sonaira é elogiada por deputados estaduais bolsonaristas. Valéria Bolsonaro (PL) define Sonaira como um “exemplo de mulher”. “Em menos de três meses, já é visível a autonomia [com] a qual ela se apresenta e como busca levar por todo o estado a simbologia da mulher”, disse.
Gil Diniz (PL) diz que ela é um “fenômeno” e defende a atuação contra o aborto no governo.
“É uma pauta prioritária. Se algum secretário porventura não defender a vida desde a sua concepção, acredito que esteja no lugar errado. Acredito que todos defendem essa pauta da vida. É uma pauta cara à Sonaira, a mim, ao Eduardo Bolsonaro, ao presidente Bolsonaro e ao governador também”, disse.
Tarcísio já se declarou contra o aborto, mas durante a eleição prometeu cumprir a legislação em relação ao tema. A interrupção da gravidez é autorizada em três casos: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto.
No Una-se Mulher, estiveram presentes ativistas do movimento autointitulado pró-vida, grupos em geral a favor do chamado “Estatuto do Nascituro”, que visa restringir abortos legais.
Além de Zezé Luz, a ação teve como palestrante Rose Santiago, do Cervi (Centro de Reestruturação para a Vida), que foi candidata a deputada federal pelo PRTB, com o nome de Rose do Cervi, a Pró Vida. Ela não se elegeu.
Com abordagem mais sutil que a da cantora, Santiago fez relatos de mulheres atendidas pela entidade que resolveram por não fazer aborto ou que, como repete frequentemente, optaram pela vida. Na palestra, citou-se a possibilidade de uma parceria nas políticas da secretaria.
No saguão do Memorial, havia um estande do Cervi com folhetos para mulheres grávidas. Sonaira chegou a posar segurando um boneco de um feto ao lado de um banner da entidade.
A postura da secretária, que antes de assumir chegou a fazer vigília em frente a um hospital que realiza abortos legais, é criticada pela oposição.
“Sonaira à frente da Secretaria da Mulher é um ataque ao direito das mulheres e uma sinalização do Tarcísio para a ala mais ideológica do bolsonarismo”, diz a deputada Paula Nunes, da Bancada Feminista (PSOL).
“Lutaremos para que hospitais do estado sigam realizando e sendo referência do aborto legal. A orientação ideológica da secretária, fundamentalista religiosa e antifeminista, não pode ser o tom da política para as mulheres.”
A cientista política Hannah Maruci, diretora d’A Tenda das Candidatas, que capacita mulheres líderes para a política eleitoral, diz que é papel da pasta informar as mulheres sobre os seus direitos —e o aborto legal é um deles. Uma militância contra o tema dentro da estrutura do governo iria no sentido contrário.
“É problemática uma atuação nesse sentido porque coloca em risco direitos das mulheres. A secretaria tem como objetivo ampliar o acesso às políticas públicas e criar políticas em áreas que não estão sendo cobertas”, diz.
A reportagem procurou a pasta de Sonaira e o governo. Em nota, a gestão afirmou que a secretaria “atua com o propósito de fortalecer e ampliar as políticas públicas que assegurem a plenitude dos direitos às mulheres”.
“O evento citado oferece uma ampla programação voltada à promoção da dignidade, à saúde da mulher e à qualificação profissional”, diz o governo.
Segundo a nota, o evento atendeu mais de mil mulheres e teve presença de integrantes da sociedade civil, Legislativo e Executivo.