Na última década, o número de pessoas em situação de rua no Brasil aumentou mais de dez vezes. O cenário foi agravado por um período de desmonte de políticas sociais e total falta de foco no combate à desigualdade, potencializado em 2016 e que ainda causa repercussões em diversos setores.
A partir de 2023, novas políticas e ações paralisadas começaram a ser colocadas em prática. Uma delas, o Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua, tem investimentos iniciais de R$ 304 milhões somente na saúde. As ações previstas incluem aprimoramento nas equipes e na estrutura.
Na lista de objetivos estão a formação de 5 mil profissionais que atuam com a população de rua em todo o Brasil, a expansão da presença do Mais Médicos nessas equipes, a abordagem territorial, o incremento de redes colaborativas e a efetivação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População em Situação de Rua, que existe no papel desde 2009.
No Sistema Único de Saúde (SUS), a implementação dessas políticas está diretamente ligada à porta de entrada do sistema. Em entrevista ao Brasil de Fato, o secretário de Atenção Primária à Saúde, Felipe Proenço, ressaltou que a garantia do acesso para a população de rua deve acompanhar a evolução da saúde pública.
Ele citou a ampliação do programa Saúde da Família como essencial para esse processo, assim como o aumento de equipes completas, com profissionais do Mais Médicos, e uma rede de cuidados também em áreas como nutrição, saúde mental e assistência social.
“Em 2024 criamos 3,8 mil equipes multiprofissionais, com assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo e que vão trabalhar com essa necessidade de um cuidado mais ampliado, com esse olhar de diferentes profissionais para cuidar bem da população. É um reforço do Saúde da Família, do trabalho multiprofissional e do Mais Médicos. Portanto, um reforço do cuidado com a população brasileira e, nesse caso, um cuidado bem evidente com a população em situação de rua”, destacou ele.
Na conversa com o BdF, Proenço também falou dos planos para 2025, que preveem ampliação ainda maior nas políticas.
“A expectativa é de ampliar o número de equipes de Consultório na Rua (eCR), que levam atendimento médico, de enfermagem e social diretamente às ruas, buscando entender o contexto e as necessidades da população. A meta é chegar a 600 equipes até 2026, um aumento significativo em relação às 275 existentes em 2024.”
Leia a entrevista na íntegra a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Há cerca de um ano, o Ministério da Saúde lançou uma série de políticas voltadas para a população em situação de rua. O que já se caminhou nesse plano, no que diz respeito à área primária?
Felipe Proenço: O Sistema Único de Saúde (SUS) – que vem sendo reconstruído, especialmente após o desmonte ocorrido entre 2016 e 2022 – tem a capacidade de chegar a diversas localidades e trabalhar com as populações mais vulneráveis. É nesse contexto que se destaca a importância do trabalho do SUS com a população em situação de rua.
É por isso que temos, dentro da Atenção Primária à Saúde, a modalidade de equipes de consultório na rua, compostas por médico, enfermeiro e agente social. Essas equipes chegam nas localidades onde essa população se encontra, buscando entender seu contexto e suas necessidades.
A abordagem que entendemos que deve ser feita é a abordagem de cuidar e compreensão do contexto da pessoa, sem culpabilizar ou prescrever um determinado comportamento. Por isso, o Ministério da Saúde integra o plano Ruas Visíveis. Ampliamos o número de equipes de consultório na rua. Em 2024, serão 275 equipes, e a perspectiva é chegar a 600 até 2026.
Além disso, há uma formação específica para os profissionais, tanto das equipes de consultório na rua quanto das unidades básicas de saúde, que têm que acolher, vincular e cuidar da população em situação de rua. O objetivo é desenvolver uma abordagem mais humanizada e estimular o cuidado integral a essa população.
Quais são as expectativas na saúde primária para a população de rua em 2025?
A ministra Nísia anunciou em abril de 2024 a expansão da saúde da família como estratégia prioritária para o SUS. Diversos estudos demonstram que a saúde da família cuida bem das pessoas, com bons resultados, como a diminuição da mortalidade infantil e de internações evitáveis. Principalmente, a saúde da família tem um papel fundamental no enfrentamento das desigualdades.
Ou seja, quando se tem um sistema como o SUS, que é universal e para todas as pessoas do Brasil, e se trabalha com o princípio da equidade, que é garantir o cuidado para aqueles que necessitam de mais suporte, a saúde da família se torna essencial. Com mais de 53 mil equipes nos mais de cinco mil municípios brasileiros, o alcance é muito grande.
A saúde da família está presente em diversas áreas, como áreas ribeirinhas, periferias das grandes cidades, e atende à população privada de liberdade e em situação de rua. As modificações que a ministra apresentou para reforçar a saúde da família este ano dialogam, inclusive, com a situação em que os trabalhadores da saúde da família estavam sobrecarregados e as equipes estavam com dificuldade de acesso, enquanto a população enfrentava filas.
Mudanças na forma de financiamento e na forma de vincular as pessoas a cada uma das equipes foram implementadas para garantir que a população possa ser bem atendida na saúde da família e que os trabalhadores também resgatem o que a saúde da família sempre foi: cuidar bem das pessoas.
É uma diretriz do governo ouvir a necessidade da população e de quem se organiza para cuidar dela. A meta de trabalhar de forma humanizada, acolhedora e entendendo a necessidade de saúde da pessoa em situação de rua foi um ponto em comum que abriu a possibilidade para aprofundar o desenvolvimento desses projetos que já tem reforçado a saúde da família.
A ministra Nísia anunciou a meta de alcançar 80% da população brasileira até 2026 e também a ampliação de equipes de consultório na rua para cuidar da população em situação de rua, que é tão importante para o Sistema Único de Saúde.
Houve um incremento na formação das equipes nos últimos anos. Quais os desafios de trazer essa massa trabalhadora do SUS para o atendimento de rua e quais as soluções propostas pelo Ministério?
Quando iniciou a gestão da ministra Nísia, eram mais de 50 mil solicitações dos municípios de equipes, serviços e trabalhadores, que eles queriam vincular para desenvolver as ações dos municípios. Elas estavam represadas porque o governo anterior tinha feito grandes cortes do ponto de vista das ações da saúde. O próprio Mais Médicos estava muito ameaçado, ele não tinha orçamento para finalizar o ano de 2023. Foi a PEC da Transição que conseguiu recompor o orçamento do Mais Médicos.
Em 2022 ele tinha chegado na pior situação da série histórica desde que foi criado, em 2013. Tinha pouco mais de 12 mil médicos no programa. Ao retomarmos o programa atingimos quase 27 mil médicos. Ele mais que dobrou e voltou a ter essa característica de chegar nas localidades mais remotas, nas localidades que têm mais dificuldade de atrair e de fixar profissionais médicos. Então, até 2023 não tinha presença de profissionais do programa nas equipes do Consultório na Rua.
Ao agregarmos o programa no Consultório na Rua, garantimos que várias equipes que não contavam com o profissional médico passassem a contar com esse profissional médico. É importante ter uma equipe completa na saúde da família, no Consultório na Rua, porque os problemas de saúde que são trabalhados são muito complexos, são muito variados. São retratos, inclusive, dos problemas socioeconômicos que a população vive.
No momento em se trabalha com a população em situação de rua, é preciso abordar uma série de questões das necessidades dessa população. São problemas de moradia, renda, emprego e acesso aos direitos fundamentais que estão dispostos na nossa Constituição. Então, garantir esse direito à saúde, como é o papel do SUS – que entende que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado – é uma das diretrizes desta gestão do Ministério da Saúde.
É um reforço da saúde da família, do trabalho multiprofissional, do Mais Médicos e é, portanto, um reforço do cuidado com a população brasileira e, nesse caso, um cuidado bem evidente com a população em situação de rua.
A saúde mental está em foco nesse planejamento?
Houve uma mudança também na gestão com a ministra Nísia, que criou um Departamento de Saúde Mental. Foi a primeira vez que a área de saúde mental passou a ter condição e essa prioridade dentro do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo que havia uma necessidade de reconstrução da rede de apoio psicossocial. O SUS tem feito um trabalho importante nesse sentido de demonstrar que, para cuidar da pessoa com uma necessidade na área de saúde mental, mais importante é cuidar do contexto em que ela vive, próximo das pessoas que ela conhece, junto da família que ela tem uma relação. É isso que demonstra essa possibilidade de cuidado na área de saúde mental.
Então, no momento que você tem essas equipes de consultório na rua, elas estão integradas tanto a uma rede de unidades básicas de saúde quanto a uma rede de atenção psicossocial, elas têm essa possibilidade de incorporação de profissionais, a exemplo da psicologia, do serviço social. Isso faz com que ao longo do tempo a equipe vá conhecendo bem essas pessoas e podendo cuidar dessas pessoas conforme as suas necessidades.
Acho que traz uma das marcas importantes do Sistema Único de Saúde, que está em processo de reconstrução, mas que está em processo de avanço também, em termos de um departamento dedicado especificamente a essa área de saúde mental, demonstra esse compromisso e essa ação mesmo do governo Lula em cuidar das pessoas.
O que é essencial avançar no próximo ano na atenção primária à população em situação de rua em todo o país?
Olhando primeiramente para 2023 e 2024, temos algumas situações que foram muito constrangedoras para o Brasil e que já foram superadas. Por exemplo, o Brasil estava na lista de 20 países que menos vacinavam as crianças. Isso era inimaginável há 10 anos, até porque o Programa Nacional de Imunização é referência mundial. Felizmente, saímos dessa lista.
É um exemplo de como podemos retomar políticas públicas importantes e inovar nessas políticas públicas, porque a população precisa de mais. A população sabe da necessidade de termos um governo que cuide, que apoie as pessoas. E é nesse sentido que olhamos para o ano de 2025 e olhamos exatamente esse caminho de expansão de equipes de Consultório na Rua, chegar em mais localidades, ter uma composição com mais trabalhadores que possam apoiar essas localidades e, ao mesmo tempo, o aprofundamento do diálogo entre a Unidade Básica de Saúde e as equipes de Consultório na Rua.
É por isso que, ao longo de 2025, vai se desenvolver também um processo importante de formação com os trabalhadores de saúde. Trabalhamos com processos de formação que não são somente as pessoas receberem um determinado conteúdo e sim de que essa formação possa servir para a ação, possa servir para criticar e melhorar a política pública e possa trazer repercussões para os territórios, para as localidades onde essas equipes estão trabalhando e onde estão cuidando também da nossa população.
São metas importantes, assim como vamos ampliar a cobertura do Saúde da Família, consolidar o Mais Médicos. Isso tudo significa não só a reconstrução, mas também o fortalecimento e a ampliação do SUS e do direito à saúde. É o que esperamos para 2025. Que o SUS consiga cuidar bem das pessoas e que esses resultados de tanto trabalho nesses dois primeiros anos também possam trazer repercussões no terceiro ano do governo Lula.
Edição: Thalita Pires