Nos jogos da guerra comercial que Donald Trump promete recomeçar na volta à Casa Branca em janeiro, o Brasil não é um alvo preferencial e tem boas possibilidades de ficar entre os menos atingidos pela metralhadora tarifária do líder republicano. É possível, inclusive, que sobrem alguns benefícios colaterais, ainda que em menor grau do que durante a primeira fase do conflito, na administração anterior de Trump.
Também à China, arqui-inimiga de Trump, não interessa ver as sólidas relações comerciais com o Brasil prejudicadas pelo enfrentamento com os EUA. Ao contrário, os chineses podem aumentar ainda mais o valor do ticket gasto com alimentos importados da América do Sul, apesar de o ritmo de crescimento da economia ter caído quase pela metade em relação à última década.
Por outro lado, com maior dificuldade de exportar para o mercado norte-americano, o excedente de produção chinês de veículos e celulares, por exemplo, poderá escoar “com desconto” para outros mercados, como o Brasil, ajudando a desinflacionar os preços.
Contudo, é no agronegócio, âncora da balança comercial, que estão em jogo grandes interesses brasileiros. No ano passado, China e Hong Kong absorveram 38% do total das exportações do setor. Os Estados Unidos e o Canadá tiveram fatia mais modesta, de 7%, a atrás da União Europeia (14%) e dos países do Oriente Médio e norte da África (12%).
Em um novo conflito comercial EUA-China, fontes ouvidas pela Gazeta do Povo apontam que a melhor estratégia seria “ficar quieto, deixar que eles briguem e permanecer longe dos holofotes”. O maior perigo das escaramuças entre as duas maiores economias mundiais pode estar menos na guerra do que no armistício.
A Arte da Negociação
“É bem possível que no final esse negócio resulte até em acordo dos EUA e China, que abra mais mercado para os americanos do que pra gente. E aí a coisa se inverte”, alerta Marcos Jank, professor e coordenador do centro Insper Agro Global.
Jank observa que no livro coescrito por Trump, A Arte da Negociação, o americano deixou claro que a estratégia é forçar exigências e números altos para depois ter margem de negociação.
Ainda que no momento um acordão pareça algo distante, comercialmente há um peso maior de chips, semicondutores e carros elétricos do que de milho, soja e carne.
“Dizem que o Elon Musk será o negociador. E ele é o cara que mais precisa da China. O ambiente para um acordo é péssimo hoje, mas se de repente a coisa caminha para isso, nós podemos inclusive sair perdendo”, pondera Jank. Em guerras comerciais, “é muito difícil cantar vitória”, acrescenta, porque, ao fim e ao cabo, protecionismo “é uma coisa ruim”.
É inegável, contudo, que a primeira guerra comercial de Trump contra a China favoreceu os negócios da agropecuária brasileira com o gigante asiático. As tarifas retaliatórias contra 382 produtos americanos obrigaram os chineses a buscar outros fornecedores. Em alguns casos, como soja, milho e carne, as vantagens competitivas que já colocavam o Brasil em posição de destaque fizeram o país ocupar rapidamente a maior parte da lacuna aberta pelos americanos.
Guerra comercial não teve trégua no governo Biden
Para evitar o descontentamento dos produtores rurais, seus eleitores fiéis, Trump despejou durante o primeiro mandato US$ 28 bilhões em subsídios, segundo dados da Forbes. Na soja, os produtores teriam recebido US$ 5,4 bilhões a mais do que as perdas decorrentes da queda de preços devido às retaliações chinesas, aponta estudo da Universidade da Califórnia em Davis.
Ainda que a retórica da guerra comercial tenha diminuído no governo Biden, o presidente democrata não somente não cancelou as sobretaxas de Trump à China, como proibiu a exportação de itens de alta tecnologia – como semicondutores e equipamentos para fabricação de chips avançados – alegando riscos à segurança nacional americana. Os chineses responderam proibindo a exportação aos EUA de minerais essenciais para fins militares, como gálio, germânio e antimônio.
Em seu novo mandato, que percentuais de sobretaxas serão adotados por Trump e contra quais países? O Brasil está na mira?
Os números prometidos de escalada tarifária variam conforme o humor do presidente eleito. Inicialmente, Trump havia prometido aumentar em 60% as tarifas contra produtos chineses (muitas já estão em patamares de 25%, 50% e 100%), 25% de taxação em produtos do México e do Canadá e 10% em todos os outros países. Em uma declaração mais recente, afirmou que a sanção adicional aos produtos chineses começaria com sobretaxa de 10%.
Moeda dos Brics irrita Trump
Em outra frente, aprofundando a retórica protecionista, Trump jogou água fria nos planos do “Sul Global” de criar uma moeda para os países do Brics. O plano da moeda alternativa ao dólar é defendido pelo presidente Lula e tem forte interesse dos russos, que tentam diminuir a exposição às sanções americanas.
“Exigimos que esses países se comprometam a não criar uma nova moeda do Brics nem apoiar qualquer outra moeda que substitua o poderoso dólar americano, caso contrário, eles sofrerão 100% de tarifas e deverão dizer adeus às vendas para a maravilhosa economia norte-americana”, escreveu Trump na plataforma Truth Social.
Para vários analistas, a vitória de Trump – com o decorrente o aumento do protecionismo americano – foi uma das principais razões para a Comissão Europeia ter decidido bater o martelo sobre o acordo com o Mercosul.
“Acho que a União Europeia decidiu tirar do congelador o acordo com o Mercosul porque eles também vão ter muitas rusgas com o Trump. Muitos dizem que o Trump não vê com bons olhos o superávit que a Europa tem com os Estados Unidos, principalmente a Alemanha”, observa Josilmar Cordenonssi, professor de Ciências Econômicas da Universidade Mackenzie.
O recado americano seria “cada um que se vire, porque os Estados Unidos não vão segurar ninguém”. “Então, a União Europeia pode se aproximar mais da gente e nós podemos aproveitar esse vácuo que os EUA deixarem no comércio internacional”, completa.
Com Trump, questões ambientais não vão seguir agenda verde europeia
Trump não esconde de ninguém sua aversão à rediscussão do comércio sob imperativos ambientais. O futuro mandatário americano ameaça sair novamente do Acordo de Paris. E tem deixado claro que não aceitará imposição de critérios e parâmetros de uma “agenda verde” que, em sua visão, funciona na verdade como restrição não tarifária.
Um efeito positivo dessa postura, para os interesses do Brasil, seria o de enfraquecer o modelo europeu como critério global para definir o que sejam práticas produtivas sustentáveis.
Para o professor associado da Fundação Dom Cabral Eduardo Menicucci, o recrudescimento do protecionismo europeu e americano indica que o mundo caminha para redução da globalização. Tendência a ser acentuada na nova gestão de Trump, que poderá forçar um rearranjo no fluxo do comércio global, principalmente quanto aos produtos industrializados.
Em guerra comercial, produção de alimentos não migra como chips e carros
“Desde o slogan da campanha, ele sempre falou em retomar o processo de industrialização e produção dentro dos Estados Unidos. Mas uma coisa é fazer isso com produtos industrializados ou manufaturados, outra é fazer com comida”, enfatiza Menicucci, lembrando que é possível mover fábricas inteiras de um continente para outro, mas não se transportam terras férteis para o cultivo de alimentos.
“Nós exportamos soja para alimentar o porquinho lá na China. As pessoas nunca vão parar de comer. Para cair a exportação, só se efetivamente arrumarem alguma outra fonte de proteína, mas não vejo no curto espaço de tempo essa possibilidade”, destaca Menicucci.
Seria recomendável, contudo, uma menor dependência das exportações à China, país que também investe para ser cada vez mais autossustentável. “Acho que devemos estar preparados para esse processo de realocação do mercado consumidor. E um país que desponta é a Índia, que tem um mercado praticamente do tamanho da China. Nós vamos ter que diversificar nosso portifólio de clientes”, defende.
Segurança alimentar em primeiro plano
Num ambiente comercial mais hostil entre blocos e países, uma nova tendência seria de as negociações focarem menos no preço e mais na segurança alimentar e estratégica.
“Em momento de tensão, tão ou mais importante do que um produto barato e de qualidade é a certeza de que o país será abastecido. O que significa que os países estarão dispostos a celebrar acordos que talvez não sejam aqueles que me forneçam o bem mais barato ou melhor, mas que me garantam que o ano que vem eu não vou passar fome”, sublinha Daniel Vargas, professor de Economia da FGV, em entrevista ao Centro de Inteligência da Carne Bovina (Cicarne), da Embrapa.
Alguns pontos objetivos tiram o Brasil da “linha de tiro” de Trump. O país é um dos poucos que não tem superávit comercial com os EUA e, portanto, fica de fora da lista de retaliações do americano para um “comércio mais justo”. Também não é plataforma de exportação de outros países para os EUA, como ocorre com o México.
“Não acredito que o Brasil seja foco de qualquer ação retaliatória do ‘Make America Great Again’. Ao contrário, acho que ele vai tentar uma relação forte com o Brasil até para reforçar o papel dos EUA nas Américas, que andou perdendo espaço para a China”, destaca Marcos Jank.
Ruídos com Lula nas redes sociais
Nessa linha também vai Cordenonssi, da Universidade Mackenzie. “Acho que algum ruído pode ter contra o Lula, nas redes sociais. Mas no aspecto econômico eu não acredito. Comprar briga com o Brasil não vai ganhar votos nos Estados Unidos. Ele ganha votos combatendo a Venezuela, pelo menos retoricamente”, enfatiza.
No campo das oportunidades comerciais, o entusiasmo das relações entre o presidente argentino, Javier Milei, e Donald Trump, poderia gerar benefícios colaterais ao Brasil. Apesar de governar um país de indústria altamente protecionista, Milei tem defendido um tratado de livre comércio com os Estados Unidos
Para Cordenonssi, se Lula fosse pragmático e “pegasse carona” neste projeto, o Brasil poderia se posicionar para aproveitar da melhor forma os ventos favoráveis.
“Ele até poderia surfar essa onda e fazer uma certa amizade [com Milei]. Mas duvido que vá fazer isso. Para o Brasil, economicamente seria excelente. Continuaríamos abertos com a China, com a Europa e os Estados Unidos. Ia ser a coisa mais improvável do mundo, mas, nesse mundo maluco, de repente acontece”, conclui.