Rebecca Cheptegei: assassinatos revelam padrão de abusos – 26/11/2024 – Esporte


Rebecca Cheptegei adorava galinhas. Ela as criava e coletava seus ovos todas as manhãs. Sua família brincava gentilmente que ela as amava demais.

“Ela estava sempre rindo”, diz sua mãe, Agnes. “Você sempre sabia quando ela estava em casa.”

Cheptegei tinha um galinheiro onde quer que morasse. Este ano, ela construiu uma casa na vila queniana de Kinyoro, financiada por seu sucesso recente —venceu o Mundial de Corrida de Montanha, em 2022, e ficou em segundo lugar na Maratona de Florença, no ano passado.

Na tarde de 1º de setembro, enquanto Cheptegei estava na igreja, seu ex-parceiro Dickson Ndiema Marangach entrou no galinheiro, com suas sólidas paredes de madeira. Quando ela voltou para casa, foi para fora verificar seus animais.

Marangach saiu do galinheiro e jogou gasolina em seus olhos. Enquanto ela cambaleava, ele usou o galão de gasolina para encharcar o resto de seu corpo — e a incendiou.

Sua irmã de 17 anos, Dorcas, correu para ajudar, puxando a jaqueta preta de Cheptegei, sua melhor roupa de igreja, mas fugiu após ser ameaçada pelo facão de Marangach.

“Não consigo esquecer”, disse Dorcas. “Continuo sonhando com ela pedindo ajuda.” Observando de dentro estavam as filhas de Cheptegei de um casamento anterior: Joy, 12, e Charity, 9.

Quando Cheptegei caiu na grama, Marangach se aproximou e despejou o resto da gasolina sobre ela. Ele se queimou gravemente no processo.

Quando a ajuda chegou, as únicas partes de Cheptegei que não estavam cobertas por queimaduras de segundo ou terceiro grau eram seus antebraços e canelas.

“Mamãe, por que não havia ninguém lá para me salvar?” ela chorou para sua pastora, Caroline Atieno, no hospital naquela noite.

Nas primeiras 24 horas, Cheptegei conseguiu falar e descrever o ataque.

Ela piorou nos dias seguintes. Um a um, seus órgãos pararam de funcionar.

Enquanto ainda podia falar, Cheptegei repetiu duas coisas em suaíli.

“Por que Dickson não conseguiu ver uma coisa boa em mim, para que ele não fizesse isso?”

“Quem cuidará dos meus filhos?”

Cheptegei morreu quatro dias após ser atacada. Ela tinha 33 anos.

Marangach morreu de suas próprias queimaduras em 10 de setembro.

A maioria dos corredores quenianos treina na cidade de Iten, perto de Eldoret. Ela fica acima do Grande Vale do Rift em um escarpamento a 2.400 metros de altura, o ar rarefeito e a rede de trilhas produzindo um fluxo regular de medalhistas olímpicos. No Quênia, foi nomeada “a casa dos campeões”. Nos últimos anos, tornou-se conhecida por outra coisa.

A família de Cheptegei pendurou um cartaz na parede da sala de estar. Ele diz “Lutando pelas Vítimas de Feminicídio” e lista quatro nomes.

  • Rebecca Cheptegei — embora nascida e competindo por Uganda, ela vivia no Quênia desde os 2 anos de idade.
  • Damaris Muthee Mutua — estrangulada em Iten em abril de 2022. Nascida no Quênia, ela representou o Bahrein internacionalmente. A polícia nomeou seu namorado, Eskinder Folie, como o principal suspeito, mas ele fugiu para seu país natal, Etiópia, e os esforços para capturá-lo foram malsucedidos.
  • Edith Muthoni — velocista de 27 anos morta em outubro de 2021. Seu marido foi acusado em conexão com sua morte em 2022 e o caso continua.
  • Agnes Tirop — esfaqueada até a morte na mesma semana que Muthoni, um mês após quebrar o recorde mundial dos 10.000 metros na Alemanha. Seu marido e treinador, Ibrahim Rotich, confessou tê-la agredido em uma discussão acalorada e depois se declarou inocente de seu assassinato. O caso também está em andamento.

“Ela era um talento puro”, disse Janeth Jepkosgei, ex-campeã mundial dos 800 metros e medalhista de prata olímpica, sobre Tirop. “Ela poderia ter sido uma campeã olímpica.”

Embora o processo legal esteja em diferentes estágios nos quatro casos, há um padrão aparente: cada atleta feminina foi morta após uma disputa financeira envolvendo seu parceiro. Falando com atletas em Iten, todos temem que elas não sejam as últimas.

Jepkosgei aludiu a um sistema de controle bem conhecido no atletismo queniano.

“Existem esses caras que caçam essas garotas talentosas e fingem ser treinadores”, disse Violah Lagat, uma atleta cujo irmão, Bernard, ganhou duas medalhas de ouro em campeonatos mundiais competindo pelos Estados Unidos. “Noventa por cento das vezes, nós, atletas, viemos de origens muito vulneráveis. Nossos pais não têm dinheiro suficiente ou comida suficiente, não conseguem fornecer absorventes para as meninas. Esses homens inicialmente fornecem isso.”

O atletismo no Quênia é uma rota para sair da pobreza. Os vencedores masculino e feminino da Maratona de Nova York deste mês ganharam US$ 100 mil [R$ 581 mil, na cotação atual], 15 vezes o salário médio de um queniano, mas ter um bom desempenho em corridas locais pode proporcionar um estilo de vida confortável. Cerca de 30 corredoras ganham mais de US$ 100 mil por ano, em um país onde um terço da população vive abaixo da linha da pobreza. Com a maioria dos atletas vindo de origens rurais pobres, eles invariavelmente nunca terão lidado com somas tão grandes de dinheiro.

“Em muitos casos, esses homens estão gradualmente manipulando alguém para colocar toda a confiança neles”, disse Lagat. “Então o controle acontece — como estão treinando, quem estão vendo, o que fazem com seus ganhos.”

Tirop’s Angels, que Lagat cofundou com a atleta Joan Chelimo, é uma instituição de caridade administrada por atletas atuais que oferece aconselhamento e refúgios seguros para pessoas que enfrentam abuso doméstico.

De acordo com a instituição, três de cada quarto mulheres que apoia já contemplaram o suicídio por causa de sua situação.

Para chegar à casa da família de Cheptegei, você pega a rodovia de Eldoret, no extremo oeste do Quênia, em direção à cidade de Kitale. Fica perto da fronteira com Uganda, pela qual os pais de Cheptegei fugiram da violência étnica no início dos anos 1990. De Kitale, é uma estrada menor até a pequena vila de Endebess.

Essas estradas são boas para treinar, suaves para os joelhos, ondulantes para as pernas e altas para os pulmões.

Cheptegei foi vista como uma corredora talentosa aos 7 anos. Ela optou por representar Uganda após não conseguir uma vaga em um acampamento juvenil no Quênia e foi apoiada em seu treinamento pelo Exército do país. Após um curto período em Uganda, ela voltou para o Quênia para as instalações de treinamento superiores. Lá, ela conheceu Marangach.

Seu amigo Emmanuel Kimutai disse: “Ele era um homem de boda-boda”, uma espécie de mototaxista, “mas fingia ser treinador.”

“Ele começou escoltando os corredores com sua motocicleta, carregando bebidas”, disse Kimutai, “mas quando percebeu que Rebecca não estava em um relacionamento, aproveitou-se.”

Os problemas começaram quando Cheptegei decidiu comprar sua própria motocicleta para levar seus filhos Joy e Charity à escola. Segundo a família, Marangach foi quem comprou a moto usando dinheiro de Cheptegei, mas colocou o veículo em seu nome. Quando a atleta reclamou, o homem a ameaçou.

“Ele continuava repetindo os mesmos avisos para Rebecca”, disse Agnes. “Ele dizia que mutilaria suas orelhas, mutilaria seu nariz, mutilaria seus genitais.”

Em uma ocasião, seu irmão Jacob, um corredor de elite de 18 anos, pegou emprestada a motocicleta, com a permissão de sua irmã, para uma corrida em Uganda. Ele disse que foi perseguido por Marangach e três de seus amigos e teve que fugir, escondendo-se em uma árvore de eucalipto para evitar ser espancado.

Enquanto isso, Cheptegei estava vencendo corridas e, com isso, ganhando mais de US$ 50 mil (R$ 290 mil) por ano.

“Dickson via o dinheiro entrando na conta bancária e tinha a senha”, disse o pai de Cheptegei, Joseph. “Ele gastava como queria. Rebecca não se sentia confortável com isso, então em abril, ela foi ao banco para mudar o número.”

“Depois de perceber que Rebecca havia feito isso, Dickson voltou para casa furioso com um facão. O telefone dela estava carregando, e ele o cortou com o facão. Ela fugiu da casa em Kinyoro e relatou à polícia.”

Na primavera, Cheptegei e Marangach se separaram, mas ele continuou insistindo que o terreno estava em seu nome, levando sua nova parceira para a casa e se recusando a sair. A polícia o deteve, mas ele estava de volta em um mês, desta vez tentando trocar as fechaduras.

“Ela chamou a polícia em Kinyoro novamente, mas o oficial disse que estava cansado de todas as reclamações nesta propriedade e que não queria ouvir mais sobre suas discussões domésticas”, disse Joseph.

Questionado sobre o tratamento do caso de Cheptegei, Jeremiah ole Kosiom, comandante do condado da polícia de Trans Nzoia, disse em uma ligação telefônica: “Como oficial sênior, nenhum relatório chegou a mim de meus subordinados. A investigação está em andamento.”

O abuso de mulheres é um problema em toda a sociedade queniana. De acordo com uma pesquisa do governo de 2022, cerca de 40% das mulheres quenianas entre 15 e 39 anos enfrentaram abuso físico.

Em 2019, uma pesquisa do governo relatou que uma em cada seis mulheres quenianas havia sofrido violência sexual antes de completar 18 anos.

“Muitas meninas são sexualmente violadas porque vão para uma massagem antes de uma corrida e dizem que têm 300 xelins [R$ 13]”, disse Lagat. “Então são informadas: ‘Não, são 500’ [R$ 22] — mas se você está se preparando para uma corrida e esta é sua chance, pode evitar os 200 extras se fizer outra coisa.”

Essa “outra coisa” pode incluir doping. De acordo com a Agência Mundial Antidoping, 44% dos testes positivos para eritropoietina, ou EPO, vêm do Quênia. Com os altos níveis de exploração por parte de treinadores-parceiros, desesperados para maximizar a renda, há um incentivo adicional para obter qualquer vantagem.

“Conheço duas corredoras cujos maridos eram os que as ajudavam a conseguir as drogas”, disse Chelimo Saina, que dirige um grupo de apoio a vítimas de abuso doméstico. “É o que quer que as faça vencer. E, claro, estão usando o dinheiro da atleta para conseguir isso.”

Jackson Tuwei, presidente da Athletics Kenya, um comitê executivo, reconheceu a possível conexão.

“Começamos um programa antidoping aprimorado e queremos registrar todos os nossos treinadores para saber quem é um treinador de verdade e quem não é”, disse ele. “Uma das recomendações é aumentar o número de treinadoras, e isso também ajudará a abordar a questão da violência de gênero.

“Um treinador bem treinado não faria as coisas que estamos ouvindo. Queremos eliminar aqueles que não são.”

Buscando Responsabilidade

O atletismo é um grande negócio no Quênia, e a questão de quem é responsável pelo que está acontecendo com as atletas femininas é pertinente.

Martin Tirop, irmão de Agnes, disse que ela havia relatado o que estava vivenciando à Athletics Kenya no ano anterior à sua morte, “mas ninguém a ajudou.”

Tuwei disse que a violência de gênero “continuou a acontecer a uma taxa que não podemos aceitar. Para isso acontecer, e particularmente acontecer com uma atleta de ponta, é muito doloroso, e então decidimos que não podemos aceitar esse tipo de coisa. Mas sabemos que aconteceu repetidamente depois disso.”

A Athletics Kenya introduziu várias novas políticas este ano, incluindo um painel de seis pessoas — quatro mulheres e dois homens — onde a violência de gênero e outras questões de proteção podem ser relatadas.

A Nova Geração

Na casa de Cheptegei, a chuva ameaça bloquear as estradas e Jacob tem treino no dia seguinte.

Rebecca reconheceu o talento de seu irmão e passou dicas.

“Ela sempre me dizia que eu precisava comer depois das sessões ou meu corpo ficaria fraco”, disse ele. “Ugali, ovos, frango, claro, até chapati e chá.”

Jacob abaixou a cabeça, tímido.

“Quando fica difícil, eu apenas me lembro dela me dizendo para continuar, mesmo quando o corpo diz que não pode”, disse ele.

O sofrimento é visível. Desde o ataque, Charity está traumatizada demais para voltar à escola, mas tentará novamente após as férias. Ela sussurrou que quer ser professora de inglês quando crescer. A filha de Rebecca, Joy, também é talentosa e claramente uma corredora rápida.

A família espera que Joy se torne uma atleta. Eles também esperam que o Quênia mude antes que ela o faça.



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