O Calha Norte, tradicional programa das Forças Armadas brasileiras, recebeu mais de R$ 3 bilhões em verbas de emendas parlamentares nos últimos sete anos, o que significou um desvio na finalidade original de atuação militar estratégica nas fronteiras.
Os bilhões de reais aplicados por deputados federais e senadores no Calha Norte recentemente levaram o programa a executar obras de pavimentação e construção, além de entregar máquinas, veículos e equipamentos nos redutos eleitorais indicados a dedo pelos congressistas.
A desfiguração levou o governo federal a anunciar que o programa, prestes a completar 40 anos, será transferido do Ministério da Defesa para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, que já tem sob sua responsabilidade uma estatal também convertida em emendoduto, a Codevasf.
Há vários paralelos nas trajetórias recentes do Calha Norte e da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), empresa pública criada há 50 anos para promover projetos de irrigação no semiárido que foi capturada pelos padrinhos de emendas.
Um dos que mais chamam a atenção é o da expansão territorial nos últimos anos para abranger mais municípios de interesse de deputados e senadores.
A Codevasf hoje vai da Amazônia Legal ao litoral do Nordeste, enquanto o Calha Norte chega até a se afastar das regiões fronteiriças, alcançando o estado do Tocantins.
Um dos maiores saltos no programa militar ocorreu em 2022, no último ano da gestão de Jair Bolsonaro (PL), quando a área de abrangência cresceu em 40%, passando de 442 para 619 localidades.
No primeiro ano do governo Lula (PT) houve novo acréscimo, e agora ao todo são 783 municípios. No entanto, apenas cerca de um quinto deles, 170, está nas fronteiras brasileiras.
Hoje, aproximadamente 60% do território nacional é coberto pelo Calha Norte, que chega a dez estados: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.
Os valores de emendas destinados ao programa começaram a aumentar significativamente a partir de 2017.
Daquele ano a 2023, último ano completo considerado no pedido de informações feito pela Folha ao ministério, os valores anuais de emendas executados no Calha Norte saltaram de R$ 266 milhões, em 2017 (valores corrigidos pela inflação), para R$ 688 milhões, em 2023, o que corresponde a um aumento de cerca de 160% no fluxo de dinheiro público anual.
Em 2024, até outubro, o montante foi de R$ 572 milhões. Ao todo, desde 2017, foram R$ 3,5 bilhões em emendas executadas no âmbito do programa. Desse total, cerca de 70% dos recursos foram destinados a obras, o equivalente a R$ 2,4 bilhões.
A lista de obras e serviços de engenharia realizados pelo Calha Norte é ampla e inclui pavimentação e construção de escolas, hospitais, mercados municipais, praças, quadras de esportes, estádios, ginásios, quartéis, delegacias, presídios e terminais de carga ou passageiros.
Aproximadamente R$ 1 bilhão em emendas foi gasto para a entrega de produtos, o que incluiu a distribuição de 1.877 veículos e 637 máquinas pesadas desde 2017.
O elenco de bens é bastante variado: motocicletas, carros, picapes, ônibus, ambulâncias, caminhões, compactadores de lixo, retroescavadeiras, motoniveladoras e tratores de esteira.
Em setembro, o governo anunciou que o Calha Norte será transferido do Ministério da Defesa para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional a partir deste mês.
À época, o ministro da Defesa, José Mucio, justificou a medida sob o argumento de que a pasta “vinha fazendo um trabalho que é de Desenvolvimento Regional, fugindo da finalidade do nosso ministério”.
“As Forças Armadas devem trabalhar na área delas, não devem fazer o trabalho que vinham fazendo porque isso confundia, misturava as coisas, atrapalhava a nossa gestão”, afirmou.
“Estamos deixando de fazer o que não é do nosso ministério e nem temos conhecimento para isso, e meu desejo é que as Forças Armadas voltem para os quartéis para cumprirem suas obrigações”, completou.
Mucio endossou a avaliação das Forças Armadas, sobretudo do Exército, de que o Calha Norte tinha se transformado num festival de emendas para outros fins que não os militares, como a construção de praças, quadras e espaços esportivos.
Uma série de empreendimentos desses dá voto, nas palavras de um integrante do Alto Comando do Exército. Mas, abrigados na pasta de Defesa, davam a impressão de que eram verbas para as Forças Armadas.
Uma vez tomada a decisão de transferir o Calha Norte, a preocupação dos militares passou a ser como garantir que, num quadro de corte de gastos pelo Ministério da Fazenda, seja mantida a parte imprescindível do programa para conservar os pelotões de fronteira numa região estratégica para a defesa nacional.
Também se pensou o mesmo sobre outros projetos que recebem recursos do Calha Norte, como o dos navios-hospitais da Marinha que atendem populações ribeirinhas na porção setentrional da bacia amazônica.
A realocação desses recursos ainda estava para ser equacionada do ponto de vista burocrático e, em dezembro, havia receio entre militares de que ela pudesse adiar a transferência do Calha Norte para o Ministério da Integração.
A Folha perguntou ao Ministério da Defesa sobre o atual estágio da transferência e o aumento dos valores das emendas destinadas ao programa, mas a pasta não respondeu.