No relatório final da investigação sobre a preparação de um golpe de Estado para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder após sua derrota eleitoral em 2022, a Polícia Federal (PF) encontrou um documento que descreve a formação e funcionamento de um “Gabinete Institucional de Gestão de Crise”. A finalidade, nos termos do próprio documento, seria “estabelecer diretrizes estratégicas, de segurança e administrativas para o gerenciamento da crise institucional”. Para a PF, seria o órgão que comandaria o país após um golpe de Estado.
No documento, é registrado que a ativação do gabinete seria em 16 de dezembro de 2022, na Sala de Reunião Suprema do Palácio do Planalto, e com um regime de trabalho “24/7”. A investigação da PF mostrou que o plano era efetivar no dia anterior, 15 de dezembro.
Nessa data, Bolsonaro assinaria um decreto previa a instalação de estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para realizar novas eleições. O texto também previa a prisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal e então presidente do TSE.
A investigação mostrou ainda que havia um plano para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Segundo a PF, o golpe só não concretizou porque Bolsonaro não obteve apoio dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, e do Alto Comando do Exército, para assinar o decreto de estado de defesa no TSE.
“A análise da estrutura que seria criada e do conteúdo das ações, demonstra que o documento se refere a um ato do poder Executivo, após a consumação do golpe de Estado, que seria consumado no dia 15/12/2022, para a instituição de um Gabinete de Gestão de Crise, para assessorar o então presidente da República Jair Bolsonaro na administração dos fatos decorrentes da ruptura institucional”, descreve a PF no relatório.
Uma perícia da PF descobriu que o documento foi criado e modificado pelo general Mario Fernandes, O militar é um dos principais suspeitos de incentivar e tramar o golpe de Estado e à época ocupava o cargo de secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Se fosse efetivado o golpe, o gabinete de crise teria como chefe de gabinete o general Augusto Heleno, então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e como coordenador-geral o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e na época assessor especial de Jair Bolsonaro. Os demais integrantes seriam todos militares, à exceção de um, o ex-assessor internacional de Bolsonaro Filipe Martins.
O gabinete de crise teria como “objetivo estratégico” “proporcionar ao Presidente da República [Jair Bolsonaro] maior consciência situacional das ações em curso a fim de apoiar o processo e tomada de decisão”. Sua missão seria “realizar o acompanhamento das ações estabelecidas no Decreto Presidencial para analisar assuntos com potencial de risco com o objetivo de prevenir e mitigar riscos nas ações estabelecidas e articular o gerenciamento da crise”.
Plano tinha 18 diretrizes estratégicas
São listadas 18 “diretrizes estratégicas”, entre elas, atividades ligadas à coordenação dos ministérios do governo; elaboração e execução de plano de comunicação social; estabelecimento de uma assessoria parlamentar; orientação de ações jurídicas; criação de uma rede de inteligência, inclusive a nível municipal e estadual, bem como ações de contrainteligência.
Em relação às pastas do Executivo, o gabinete iria “estabelecer ligações com os ministérios para supervisionar, coordenar, monitorar e avaliar as ações ministeriais”.
Na área de comunicação social, o plano serviria para “influenciar a opinião pública, informar e motivar Pub Alvo nacionais e internacionais, de forma a favorecer as ações planejadas e em curso”. “Estabelecer um discurso único, em todos os níveis, nas atividades de comunicação social para evitar interpretações e ilações que desinformem a população”, diz outra diretriz. Seria ainda designado um porta-voz “com notoriedade nacional e internacional”.
À assessoria parlamentar caberia “o acompanhamento aproximado e monitoramento das ações e decisões das Casas do Congresso Nacional”. “Buscar o máximo de apoio parlamentar ao Decreto Presidencial”, diz outra diretriz. “Preferencialmente, articular apoio parlamentar no sentido de aprovação das medidas políticas necessárias às ações previstas no Decreto Presidencial”, é outra diretriz listada no documento.
A rede de inteligência, “nos níveis estaduais e municipais”, teria ligação com o GSI e os Centros de Inteligência das Forças Armadas “para atuar como gestor das informações, sensor e catalisador de conhecimentos de inteligência com o objetivo de subsidiar o processo de tomada de decisão”.
A “estrutura organizacional” seria formada quase que integralmente por militares. Além de Augusto Heleno e Braga Netto, seriam nomeados para a “Assessoria Estratégica” o general Mario Fernandes e o coronel Élcio (possivelmente, Elcio Franco, funcionário de confiança do governo Bolsonaro, e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde durante a pandemia).
A Assessoria de Comunicação Social seria formada por ao menos seis militares, entre coronéis e tenentes. A Assessoria Jurídica seria composta por “Dr. Lacava”, “Dr. Melgasso”, e também pela “SAJ” e “AGU”, prováveis referências à Secretaria de Assuntos Jurídicos da Presidência da República e à Advocacia-Geral da União.
Haveria uma Assessoria de Inteligência, integrada pelos coronéis “Azevedo”, “Vieira de Abreu” e “Kormann”; uma Assessoria Parlamentar, com os coronéis “Moura Alves”, “Saraiva” e “Boelhouver”; uma Assessoria de TI, a cargo do general “Oliveira Freitas”; uma Assessoria de Segurança das Instalações, a cargo do general “Carlos Feitosa”.
Havia ainda a previsão de uma “Assessoria Operações Psicológicas”, mas sem nomes definidos para sua composição. O único civil no gabinete seria Filipe Martins, ex-assessor de Relações Internacionais de Bolsonaro, que cuidaria de uma assessoria dedicada à área.
Haveria ainda “funções especiais”, para estabelecer ligações com órgãos da Defesa e Exército, bem como pastas ou órgãos do Executivo (Secretaria de Comunicação Social, AGU, Ministério da Justiça, Relações Exteriores, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, Saúde, Casa Civil, Secretaria-Geral e Secretaria de Governo), além do Superior Tribunal Militar (STM).
Na parte final do documento, são listadas outras possíveis ações, como “minimizar as narrativas da mídia” e “ctto” (possível referência a contato) com povos indígenas, “Agro”, “manifestantes”, “classe de caminhoneiros”, “PM e Civis dos estados”. Há também uma parte dedicada à “Idt” (possivelmente identificação) de “lideranças políticas favoráveis às ações”, “jornalistas favoráveis às ações”, “prefeitos e governadores favoráveis às ações”. E por fim, “Mdd” (possivelmente medida) de “proteção da população civil contra-ataques de contrários infiltrados ou não”.