A polêmica visita do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, ao Complexo da Maré no último dia 13 teve como objetivo oficial, informado pela pasta, a participação do ministro no lançamento do relatório de uma ONG com dados sobre a violência armada no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.
No dia seguinte à visita, quando já surgiam vários questionamentos sobre as condições em que se deu o ingresso seguro de Dino no local, cujo poder é disputado pelas duas maiores facções do estado, o ministro disse que o conteúdo do relatório da ONG, chamada Redes da Maré, teria sido aproveitado na elaboração do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). O programa do governo federal foi lançado nesse mesmo dia.
“Nós acreditamos que esse boletim é um elemento importante,
uma espécie de mapa do caminho que vai nos ajudar a combater a violência no
Brasil e implantar uma cultura plena da paz”, disse Flávio Dino sobre o
relatório.
Utilizando dados apresentados pela ONG, o Pronasci não trouxe nenhuma estratégia de enfrentamento ao crime organizado. Além disso, a abertura do evento que lançou o programa contou com uma apresentação de ativistas da Redes da Maré com pesadas críticas às forças de segurança e, seguindo o tom do relatório, sem mencionar as facções criminosas, motivadoras dos assustadores índices de criminalidade no Rio de Janeiro.
A tese da ONG é de que no ano de 2022 houve mais operações
policiais no Complexo da Maré do que no ano anterior, o que teria aumentado o
número de mortes violentas. O problema é que grande parte dos dados apontados
no boletim não são oficiais. O documento diz que a ONG conta com colaboradores
e coleta dados junto aos moradores e outras organizações atuantes nas favelas
da Maré. Levantamento em veículos de comunicação e até em redes sociais também
são levados em conta.
Há, ainda, outro problema relacionado ao “filtro” dado às informações. Ainda que essa e demais ONGs venham a apurar dados que mostrem que a violência nos morros é consequência direta do crime organizado, tais informações jamais poderiam ser publicadas, já que as ONGs funcionam nesses locais mediante a autorização das próprias lideranças do narcotráfico.
Para autoridades da segurança pública do Rio de Janeiro ouvidas pela Gazeta do Povo, o relatório usado pelo governo Lula traz dados dissociados da realidade das áreas dominadas por facções criminosas e omite uma série de questões a fim de culpar as forças de segurança pela violência armada dentro das comunidades. A narrativa é semelhante à de várias outras ONGs e partidos políticos como o PT e o PSB, partido de Flávio Dino, que integram a ação no STF que culminou em restrições diversas às operações policiais nos morros fluminenses.
Boletim faz “malabarismo” para não citar facções como origem da violência armada
No relatório recebido por Dino, a ONG argumenta que a
violência armada no Complexo da Maré, formado por 16 favelas que abrigam cerca
de 140 mil moradores, tem um nome: operações policiais. No documento, há intensa
crítica às forças de segurança ao mesmo tempo em que é praticamente ignorado o
amplo domínio de grupos ligados ao narcotráfico nas comunidades de periferia,
que ditam as regras aos moradores, criam tribunais informais para execuções e
torturas e recorrem a armamento usado apenas pelas forças armadas para proteger
seus territórios de facções rivais e de forças policiais.
As duas facções que disputam o controle da Maré – Comando
Vermelho e Terceiro Comando Puro – sequer são mencionadas. A ONG chega a dizer que
89% das mortes decorrentes de confrontos entre policiais e criminosos na Maré
tiveram indícios de execução e que em 60% das operações houve denúncias de
violação de domicílios.
Já em relação aos chamados “grupos civis armados” – nome
dado às facções criminosas – teriam ocorrido apenas oito confrontos entre grupos
rivais, com somente sete registros de tiros com vítimas. A entidade chega a
dizer que na ocorrência de mortes, “nem sempre o registro de tiro com vítima
está relacionado ao confronto entre os grupos”. Os enfrentamentos entre facções
seriam, portanto, apenas um problema secundário à segurança pública segundo o
relatório.
“Há essa questão de que
se a ONG está dentro do território dominado pela facção, não vai contrariar os
interesses do crime. Mas partindo disso, como um órgão público pode receber um
relatório dessa organização tratando-o como imparcial?”, questiona um policial
da alta cúpula da Policia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ), que falou
à reportagem sob a condição de sigilo. “Se a organização não pode falar da
violência que lá existe, para que um documento desse vai ser usado pelo governo
num plano de segurança pública?”, prossegue.
O resultado prático dessa omissão de informações é que o boletim não menciona, por exemplo, a limitação do direito de ir e vir dos moradores da Maré; as torturas a moradores a título de “disciplina”; as incessantes “rondas” feitas por traficantes armados com fuzis nas ruas das comunidades; a venda de drogas e contenção armada nas portas das escolas; a instalação de dezenas de barricadas que impedem não só o avanço de viaturas, mas até mesmo de ambulâncias.
“Temos uma realidade de moradores assassinados, expulsos de suas casas, adolescentes tomadas dos pais para virarem namoradas dos traficantes. Não há menção a nada disso. Segundo o documento, todo o problema do Rio de Janeiro é a polícia, o que não é verdade”, diz o membro da PCERJ.
“Marco histórico”, diz Redes da Maré sobre a criação de obstáculos a operações policiais
Em operação feita em novembro do ano passado, policiais
encontraram forte resistência e entraram em confronto com criminosos. Na
ocasião, um dos traficantes mais procurados da Maré, Mário Bigode, foi morto.
Dois de seus “seguranças” também foram baleados.
Conhecido por esquartejar suas vítimas, o criminoso
respondia a 30 processos, o mais recente por ter sequestrado e assassinado uma
jovem que havia terminado o relacionamento com uma das lideranças do crime. Na
mesma operação, foram apreendidas três toneladas de drogas, veículos roubados,
armamentos e granadas.
Dois meses antes, um chefe do tráfico de Vila Velha, no
Espírito Santo, foi um dos 26 presos durante outra operação policial. “Luanzinho”,
como é conhecido, estava abrigado no Complexo da Maré e de lá comandava crimes
no estado vizinho.
Casos como esses não são raros: somente nesta quinta-feira
(23), a PM do estado prendeu uma liderança do tráfico de Sergipe que estava
abrigado no Complexo da Maré. No mesmo dia, em confronto com a polícia, foi
morto um chefe do Comando Vermelho do Pará que, escondido no Rio de Janeiro,
comandava assaltos e ataques a policiais em seu estado.
No entanto, a visão empregada pela Redes da Maré e outras
ONGs e partidos de esquerda que participam ativamente da ação que tramita no
STF conhecida como “ADPF das Favelas” busca dificultar ao máximo a ocorrência
dessas operações. Tal medida é de amplo interesse do crime organizado, bastante
beneficiado com as ordens do STF, que tiveram início em junho de 2020, para restringir
as operações policiais.
No relatório, a Redes da Maré chega a descrever a “ADPF das Favelas” como um “marco histórico na luta pela diminuição da letalidade em ações das polícias que acontecem nas favelas”.
Apoiadas pelo PT, restrições às forças de segurança diminuíram prisões de traficantes no RJ
Os holofotes que o governo Lula deu para o relatório da ONG,
ao enviar um ministro de Estado para o lançamento do boletim e convidar ativistas
para abrir o lançamento do Pronasci, é simbólico e parece representar uma
tentativa de reforçar os cada vez mais frequentes pedidos de novas restrições a
operações policiais por meio da ADPF das Favelas.
Os riscos dessa medida, entretanto, são bastante significativos. Apesar de as operações terem diminuído desde que ministros do STF passaram a acatar os pedidos das ONGs e partidos de esquerda, os confrontos entre policiais e narcotraficantes se tornaram muito mais violentos. Com mais barricadas e armas e maior ocorrência de treinamentos paramilitares aos criminosos, as facções desafiam policiais com agressividade dobrada.
O resultado é mais mortes e ferimentos de ambos os lados e
até mesmo de moradores inocentes – as três operações com maior número de mortes
ocorreram nos últimos dois anos: no Jacarezinho, em 2021 (28 mortes), e na Vila
Cruzeiro (25) e no Complexo do Alemão (17), ambas no ano passado.
Em paralelo, desde o início das restrições o cumprimento de mandados de prisão caiu dramaticamente, o que representa mais criminosos nas ruas. Dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), vinculado ao governo estadual, mostram que entre em 2020 (primeiro ano da vigências das restrições) houve redução de 41% no cumprimento de mandados de prisão na capital e região metropolitana, onde ficam as áreas com maior dominação do narcotráfico. A queda continuou se acentuando, com -10% em 2021 e -4% no ano passado.
Redução expressiva também ocorreu no cumprimento de mandados
de busca e apreensão dentro das favelas. Houve queda de 71% no cumprimento de
mandados em 2020. A queda seguiu no ano seguinte, havendo uma pequena
recuperação a partir de 2022. Ainda assim, os cumprimentos de mandados
representam apenas 20% em relação aos números de 2019.
Em paralelo, o registro de ocorrências (na somatória de todos os crimes) já volta a patamares de 2019. Houve reduções pontuais durante o momento mais crítico do isolamento social, que não se mantiveram. Enquanto em 2019 foram registradas 635 mil ocorrências, o ano de 2022 registrou 615 mil.
Fundação que apoia desencarceramento em massa e descriminalização de drogas financia Redes da Maré
No boletim enviesado da Redes da Maré consta o apoio de duas entidades estrangeiras que financiam organizações dedicadas ao ativismo político de esquerda em vários países – a Ford Foundation e a Open Society Foundation, do bilionário de esquerda George Soros.
Na visita de Dino à Maré, o ministro encontrou representantes da Open Society, que aporta milhões de dólares em entidades que atuam na defesa de medidas que impactam negativamente na segurança pública, como descriminalização das drogas e desencarceramento em massa.
Entre 2016 e 2021, a Redes da Maré recebeu ao menos US$1,1
milhão (na cotação atual, quase R$ 6 milhões) da fundação de Soros. Segundo o
último relatório financeiro da ONG, com dados referentes a 2021, 57% dos
recursos que a mantêm são estrangeiros. A entidade de ativismo mantém 350
funcionários e arrecadou R$ 15,2 milhões naquele ano.
Além da Redes da Maré, outras ONGs financiadas pela Open
Society Foundation integram a “ADPF das Favelas” na tentativa de diminuir
as operações policiais no Rio de Janeiro. Embora não seja ilegal, o repasse de
recursos gera questionamentos pelo potencial de que uma organização estrangeira
tenha influência indevida sobre os rumos do debate público em outros países.