A PEC da Anistia criou um cenário de indefinição sobre o cumprimento das cotas de distribuição de fundos públicos pelos partidos para candidaturas de pessoas pretas e pardas nas eleições de 2024.
Dados da prestação de contas dos candidatos ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) até 10 de dezembro analisados pela Folha indicam que a regra vigente no começo da campanha não foi seguida pela maioria das dez siglas que mais receberam recursos do fundo eleitoral.
Por ela, as legendas seriam obrigadas a distribuir a verba de forma proporcional às candidaturas de pessoas negras e não negras, considerando o recorte de gênero.
A regra introduzida pela PEC da Anistia, porém, estabeleceu a aplicação de ao menos 30% dos recursos dos fundos públicos em candidaturas de pessoas pretas e pardas. É com base nesse percentual que a maioria dos partidos procurados pela reportagem diz ter cumprido a cota.
Enquanto o total de candidaturas negras nas eleições variou de 43% a 57% nos maiores partidos, o percentual do fundo eleitoral destinado a elas ficou entre 34% e 43%.
A prestação de contas dos candidatos e dos partidos é obrigatória, e o prazo terminou em 16 de novembro. Caberá à Justiça Eleitoral em primeira instância apreciá-las.
Partidos dos diferentes espectros ideológicos se uniram pela aprovação da PEC da Anistia, que perdoa irregularidades como o descumprimento da cota racial em 2020 e 2022 e estabelece um percentual de repasse. A emenda entrou em vigor no dia 22 agosto, quando a campanha eleitoral já estava em andamento.
A Constituição prevê o intervalo mínimo de um ano de vigência para a aplicação de leis que interfiram nas eleições. Entretanto, não há menção se o prazo também vale para alterações constitucionais. Diante do impasse, caberá à Justiça estabelecer o entendimento.
O PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi o partido que recebeu a maior fatia do fundo eleitoral, de R$ 888,7 milhões. Na sequência, vem o PT, do presidente Lula, com R$ 619,8 milhões, e o União Brasil, com R$ 538,6 milhões.
A prestação de contas de candidatos negros, considerando apenas homens, indica que nenhum partido fez o repasse de forma proporcional, segundo consta no TSE.
Os que mais se distanciaram foram o PT, que destinou 38% para 58% de candidatos, e o PDT, com envio de 33% de fundo para 53% dos candidatos.
Para as candidatas negras, apenas Republicanos e União Brasil cumpriram a regra da proporcionalidade, com repasses de 55% e 56%, respectivamente —acima do total de candidaturas. O PDT foi o que mais se distanciou, repassando 37% do fundo para 53% das candidatas.
Já os menores percentuais de repasse foram do PL. O partido destinou só 28% aos 44% de candidatos negros e 36% para 42% de candidatas negras.
Se considerado o total de candidaturas negras na disputa, soma de homens e mulheres, o PL também fica na lanterna, com uma fatia de 27% de fundo para 57% de candidatos negros. O percentual coloca o partido abaixo até dos 30% previstos pela nova emenda.
Em nota, a sigla diz que destinou 31% a candidaturas negras. Acrescenta que a análise sobre o cumprimento das cotas é feita a partir da prestação de contas do diretório nacional do partido e por meio de contas bancárias específicas.
O PT diz ter destinado a candidaturas negras 35% do fundo eleitoral e que essa informação consta na prestação de contas eleitoral do partido.
“É possível que muitas candidaturas não tenham prestado contas ou que tenham prestado contas de forma parcial e ainda estão em processo de retificação”, afirma. Diz ainda que não cabe especulação sobre a aplicação da nova emenda, citando uma decisão individual do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Cristiano Zanin, que rejeitou pedido de suspensão feito pela Procuradoria-Geral da República.
O União Brasil disse ter destinado 56% do fundo para negros, acima dos 30% exigidos pela emenda, também defendendo a nova regra com base na decisão de Zanin.
O PSD também afirma que enviou 30% dos recursos do fundo para mulheres e homens negros. Já o MDB e o Republicanos dizem que cumpriram o percentual previsto pela nova emenda.
Para Maíra Recchia, presidente do Observatório Eleitoral da OAB-SP e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), a aplicação da regra para as eleições de 2024 deve ser questionada diretamente no STF por se tratar de um tema constitucional. Ela explica que a decisão de Zanin, por ser individual, não é definitiva e defende que o percentual não seja tratado como limitador.
“Se estamos falando de uma ação afirmativa, o percentual de 30% não pode ser visto como um teto. É importante que, quando as candidaturas ultrapassem esse percentual, haja o repasse proporcional para que se tenha maior condição de competitividade”, diz.
A advogada eleitoral Isabel Mota, integrante do Black Sisters in law, afirma que é preciso respeitar o princípio da anualidade.
“A Justiça Eleitoral estará com a palavra para dizer da possibilidade de aplicação de regra que não observou o princípio constitucional da anualidade. É a garantia de que os competidores sabem com anterioridade as regras às quais o pleito eleitoral estará submetido.”
Repasse para mulheres
Todos os dez partidos descumpriram ainda a determinação de repasse proporcional ao número de candidatas lançadas. Além disso, com exceção do PT, a maioria dos partidos também desobedeceu a previsão de não repassar menos de 30% para as mulheres. O PT diz que o repasse beirou 42%.
O menor percentual para mulheres foi do PL, que destinou 21% para 33% das candidaturas –também maior distância, empatando com o Podemos, que enviou 21% do fundo para 34% das candidatas. Segundo o PL, seu repasse foi de 35%.
O União Brasil disse ter repassado quase 36% do fundo para as candidatas; o PSD, 33%, o MDB, 35%, e o Republicanos, 34%. O PDT diz ter enviado 36% do fundo eleitoral às candidatas. O Podemos disse que não há decisões da Justiça Eleitoral de que o partido descumpriu os percentuais de repasse para mulheres e pessoas negras.
Procurados, PP e PSDB não responderam até a conclusão da reportagem.