Decisão sobre fornecimento de remédios fora do SUS exige comprovação científica e ex-presidente da Anvisa diz que pode reduzir judicialização, mas entidades fazem ressalvas
Em julgamento finalizado na 6ª feira (20.set.2024), o STF (Supremo Tribunal Federal) estabeleceu critérios para a concessão judicial de remédios, incluindo a exigência de comprovação científica de eficácia com base em análises técnicas.
Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), diz considerar a decisão um “grande avanço” para a solução desses litígios, amplamente debatidos no Brasil.
A decisão se deu no recurso extraordinário 566471, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, que tratava do fornecimento de medicamentos registrados na Anvisa, mas não incorporados ao SUS (Sistema Único de Saúde). Inicialmente, o caso abordava fármacos de alto custo, mas foi expandido por meio de discussões ao longo do processo.
A tese aprovada determina que juízes só devem conceder medicamentos com evidências científicas de eficácia, ausência de alternativas ou negativa administrativa (quando o cidadão vai a um órgão público solicitar acesso a determinado tratamento, mas o pedido é negado).
Para Vecina, essa exigência é o ponto “mais importante” da tese, pois impõe critérios mais rigorosos para decisões judiciais. O médico afirma que a determinação pode reduzir o número de processos judiciais e, consequentemente, os gastos do SUS.
“Eu acho que tem grande chance de diminuir o número de processos de judicialização. E, nessa medida, [também] reduz o gasto do SUS“, diz Vecina.
Vecina afirma que com as novas diretrizes de comprovação científica, também cai a chance de haver gastos públicos com tratamentos por vezes ineficazes.
“Agora não tem mais a opinião de um médico isolado, de um paciente isolado. […] O remédio precisa ser coerente com o gasto que a sociedade está assumindo em nome do paciente“, declara o médico.
Em artigo para o jornal O Globo publicado na 6ª feira (20.set), a médica Ludhmila Hajjar, que participou das discussões sobre o tema na Corte, afirma que os parâmetros firmados pelo STF também demonstram avanços na relação da saúde pública brasileira com a indústria farmacêutica.
Segundo Ludhmila, embora o setor seja importante para o desenvolvimento de novas tecnologias, sua atuação levanta “preocupações” quanto à acessibilidade aos remédios e à transparência da indústria.
“Um dos principais problemas reside nos preços elevados de medicamentos, especialmente aqueles de alta complexidade ou para doenças raras, que impactam significativamente os orçamentos do SUS“, escreve a médica.
O voto seguido pela maioria dos ministros (íntegra – PDF – 154 kB) foi dado em conjunto por Gilmar Mendes e pelo presidente do STF, Roberto Barroso. Ambos levaram em conta o risco da judicialização excessiva para o sistema de saúde, comprometendo a universalidade e igualdade no acesso.
“A concessão de medicamentos por decisão judicial beneficia os litigantes individuais, mas produz efeitos sistêmicos que prejudicam a maioria da população que depende do SUS. Como resultado, afeta–se o princípio da universalidade e da igualdade no acesso à saúde“, afirmam.
Segundo os ministros, são órgãos como a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) que têm conhecimento especializado para decidir sobre a eficácia, a segurança e a custo-efetividade de um medicamento.
ACORDO PARA AÇÕES JUDICIAIS
Em caso similar, finalizado em 13 de setembro de 2024, o STF homologou um acordo entre União, Estados e municípios sobre parâmetros para ações judiciais que envolvem fornecimento de medicamentos pelo SUS. Ambos julgamentos se complementam, já que tinham escopo similar.
No recurso extraordinário 1366243, também relatado por Gilmar Mendes, foram definidos critérios sobre quais órgãos da Justiça podem analisar esses casos e quais instâncias do governo arcarão com os custos.
A comissão especial formada por Gilmar Mendes para debater o fornecimento de remédios sugeriu a criação de uma plataforma para reunir dados sobre os custos e a entrega de medicamentos, medida considerada “muito inteligente“ por Vecina. A ferramenta, dentre outros pontos, visa a dar mais celeridade aos casos.
Também foi estabelecido que pedidos envolvendo medicamentos com custo anual superior a 210 salários mínimos (R$ 296.520) serão julgados pela Justiça federal. Valores menores serão julgados pela Justiça estadual.
Outra novidade é o limite de preço dos medicamentos concedidos judicialmente, que deve ser o menor entre o proposto na incorporação pela Conitec ou o pago em compras públicas.
O governo federal deve ressarcir Estados e municípios em até 65% do custo de medicamentos cujo valor de causa seja de 7 a 210 salários mínimos (R$ 9.884 a R$ 296.520). Para remédios oncológicos, o percentual pode chegar a 80%. Casos com valores inferiores a 7 salários mínimos serão custeados pelos Estados.
ENTIDADES FAZEM RESSALVA
Apesar do apoio à decisão, há divergências sobre a competência da Conitec para analisar o tema. Isso porque o autor do pedido precisa comprovar no processo que, além de seu fornecimento ter sido negado na via administrativa, o medicamento também não passou por um pedido de incorporação ao SUS, ou teve a incorporação não recomendada.
Renato Porto, presidente da Interfarma, avalia que a posição da Anvisa –e não da Conitec– deveria ser a baliza. O órgão assessora o Ministério da Saúde na incorporação de tecnologias ao SUS, levando em conta tanto a eficácia quanto o custo-benefício.
“O que o comitê faz é recomendar uma decisão ao Ministério da Saúde. E isso é diferente de uma agência reguladora estabelecida por lei, com as suas competências muito bem definidas“, afirmou Porto ao Poder360.
Antoine Daher, presidente da Febrararas (Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras), diz que a decisão pode levar a um aumento de processos contra a Conitec: “Eu não vejo isso como uma solução porque muita gente vai começar a processar a própria Conitec caso o comitê não dê um ‘OK‘ [ao remédio]“.
Já o ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina defende que a Conitec tem prerrogativa para realizar as análises, mas sugere seu aprimoramento para que se torne independente, sem estar subordinada ao Ministério da Saúde, como o Nice (Instituto Nacional de Saúde, que avalia novas tecnologias), no Reino Unido.