Em meio ao turbilhão da revelação do inquérito da PF sobre a tentativa de golpe, precisamos discutir o obscurantismo das Forças Armadas como um todo.
Nos últimos anos, a sociedade discutiu muito sobre os “cem anos de sigilo”, mas é preciso falar também dos mais de 200 anos de sigilo das Forças Armadas. Considerando a criação da primeira força, o Exército, em 1822, já são dois séculos de pouca transparência no setor militar. E é justamente num ambiente onde o escuro impera, que atividades nefastas, como as reveladas no inquérito da PF, nascem e florescem.
A cultura do sigilo entre os militares tem períodos mais extremos, claro, como os anos de chumbo. Mas perpassa décadas e resiste até hoje, mesmo após a Constituição de 1988 e a promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI), quando a regra do Estado passou a ser a transparência, e o sigilo, a exceção. Nas Forças Armadas a lógica segue invertida.
São muitos os exemplos, alguns dos quais já discutimos na coluna “Quando os militares vão entender que são servidores públicos?“. Mas temos muitos mais!
Todos os anos protocolamos pela Fiquem Sabendo milhares pedidos de acesso à informação para todos os poderes e instâncias governamentais. Quando esses pedidos são direcionados às Forças e ao Ministério da Defesa, tudo fica mais difícil. Mais de 65% das nossas solicitações de informação para esses órgãos entre 2023 e 2024 foram negadas.
Entre eles, a ficha funcional do tenente-coronel Mauro Cid, pivô das investigações das tratativas golpistas, e os nomes dos militares punidos por envolvimento no 8 de janeiro. No primeiro caso, a negativa foi revertida pela Controladoria-Geral da União (CGU), mas a segunda foi mantida. Entrevistado pela coluna, Piero Leirner, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar, separa o que deve ser resguardado do que deve ser público e transparente: “O que é sigilosa é a operação militar, o militar, não”.
Mesmo para as operações militares e outros assuntos sensíveis, a LAI determina que só existem três prazos de sigilo no Brasil. São cinco anos para informações classificadas como reservadas, 15 para as secretas e 25 para as ultrassecretas (para entender de onde vem a história dos “cem anos de sigilo”, escute o nosso episódio no Podcast O Assunto). Em teoria, com a sua promulgação, acabou qualquer hipótese de segredo eterno no país. Entretanto, quando lançamos em 2019 o Projeto Sem Sigilo, descobrimos que a cultura do sigilo nas Forças Armadas segue desafiando a autoridade da Lei e a jurisprudência dos tribunais.
O projeto era a primeira tentativa da sociedade civil de obter a íntegra dos documentos cujos prazos de sigilo haviam expirado —e portanto, deveriam ser automaticamente públicos. Com voluntários por todo país, protocolamos centenas de pedidos para acessar esses documentos, mas Forças Armadas e órgãos de segurança (PF, GSI, Abin) simplesmente se recusam a entregá-los, violando um princípio básico da República e da LAI.
Documentos como esses que buscamos podem revelar abusos sérios do Estado, como a infiltração da Polícia Federal nos protestos de 2013, conforme mostramos na época em parceria com o UOL. E é por isso que batalhamos agora na Justiça pelo direito de todos os cidadãos brasileiros de entender, acompanhar e responsabilizar o governo quando as linhas da democracia E da liberdade individual e de expressão são ultrapassadas.
É compreensível e até esperado que esses órgãos tenham mais informações sob sigilo do que os demais. O que não cabe numa democracia é achar que razoável manter segredos por prazo indeterminado. “Para sempre” é um conceito que não deveria caber no vocabulário das instituições”, reforça Leirner.
A opacidade institucional apenas fortalece a indisciplina e a percepção de que tudo é possível. Quem acha que não tem dever de prestar contas e que não tem a obrigação de atuar com transparência se sente confortável para fazer qualquer tipo de articulação não republicana.
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