Jercedina Brizola Pereira morou 18 anos no Bairro Rio Branco em Canoas (RS) e depois saiu para o mundo de lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Está com 37 e uma experiência de “estrada” extraordinária. Casou aos 15 com Sérgio Ávila dos Reis, tem duas filhas – Jennifer (19) e Francielle (18) – e um filho – Thales (10). Tentou começar a vida no Rio Branco instalando ali um mercado que vendia de tudo um pouco, desde pães e carnes até enlatados e frutas e verduras, mas não suportou a bandidagem. Em pouco tempo, o armazém foi assaltado seis vezes. Os criminosos levaram tudo que podiam, o carro que a família tinha e “até nossa paz e tranquilidade”. Com filhas pequenas, ela e o marido buscaram uma nova estratégia de vida e saíram atrás de um canto para morar mais ameno e pacífico.
O casal não imaginava que seria uma maratona de acampamentos pelo interior. E muitas broncas pelo caminho com proprietários de terras, polícia e Justiça. Passaram pela Fazenda Annoni, Ronda Alta, Fazenda Guerra em Carazinho e outros pequenos lugares, sempre acompanhando o MST em suas ocupações na busca por espaços para morar, plantar e sobreviver dignamente. “Não usávamos violência, somos da paz, fazíamos ações e buscávamos repercussão, fazendo denúncias para que a gente fosse notado pelo mundo. Só assim conseguíamos atenção da mídia e das autoridades.”
Depois de quase três anos na Fazenda Guerra, o grupo que ali estava foi despejado pela Justiça. Era 2011. A luta continuava em outras frentes. Ficaram acampados por dois anos e meio na margem da BR-386 e, logo depois, se instalaram em área da Fepagro (Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária em Eldorado do Sul) ao longo da BR-290, 20 quilômetros distante de Eldorado do Sul. Como a área era de pesquisas e experimentos, não podiam e não queriam ficar por lá. O local não era adequado para uma permanência fixa ou mais definitiva. Moravam em condições precárias. Lonas, barracos, suportando todas as adversidades possíveis – vento, chuva, calorões, insetos e assim por diante.
Vida dura, complicada, mas o grupo do MST que andava vagando pelo Rio Grande finalmente encontrou o seu “paraíso”, segundo conta Jercedina. Depois de várias negociações, conversas, paciência e perseverança com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e outras autoridades, conseguiram se estabelecer no km 132 da BR-290. Um lote na frente da rodovia e mais seis nos fundos e área para cultivar, instalar animais (vacas, porcos, galinhas e os sempre presentes bichos domésticos, cães e gatos). Tem até açude para criar peixes. Estava sendo criado o Assentamento Lanceiros Negros, em 2014. Lá se vão dez anos e os moradores do coletivo – tudo é feito em conjunto, como uma comunidade, onde cada um divide o seu pão – estão firmes, ganharam uma vida estável. E esperam continuar crescendo em 2025.
Hoje, não falta quase nada no assentamento. Cada um construiu seu galpão e depois a sua casa. Mas foi duro no início. Por nove meses, não tinham água encanada, nem energia elétrica. Depois da concessão legal, “tudo nos trinques”, a luz veio, a água é tirada de poço artesiano, o que permitiu que o grupo de 22 pessoas integrantes de sete famílias tenha geladeira, máquinas de lavar, tevê e outros bens eletroeletrônicos e eletrodomésticos. “Estamos com 90% dos nossos problemas resolvidos”, conta ela, sempre decidida, forte e determinada. Estão felizes. Não param de ir para a frente, avançar em dignidade. A Internet está presente na área, “o sinal é muito bom, o que permite que todos acompanhem o que acontece mundo afora e tenham o seu celular para se comunicar e fazer os seus contatos”.
Nestes 10 anos do assentamento, o número de cabeças de gado chegou a 90, há dezenas de porcos e a bicharada não para de se reproduzir, gerando alimentos para o coletivo e para vender para fora. Ordenham vacas, vendem leite e produzem arroz, milho, frutas, verduras, legumes. Tudo sem agrotóxico. O arroz é um dos produtos de sucesso. Há no local até um lote especial para secagem do cereal. A marca do arroz comercializado é Terra Livre.
Os produtos são comercializados pela Cooperativa dos Trabalhadores da Reforma Agrária Terra Livre – que negocia também uma infinidade de produtos orgânicos e integrais de todos os assentamentos do MST da região. Ali, os associados também pegam produtos, além de levar os seus, para vender em Porto Alegre, em feiras, mercados, armazéns e famílias em geral. Tudo legalizado, tudo pagando os devidos impostos, sem qualquer irregularidade. “Somos muito organizados”, garante.
Jercedina é a “autoridade” do Lanceiros Negros, ou melhor, como ela diz, a “representante legal do grupo, a coordenadora das atividades para participar das reuniões com Incra, Prefeitura, empresas de energia, água, Internet”. O representante é escolhido para mandato de dois anos. Todos são ouvidos. Os pleitos são encaminhados depois que todo mundo concordar. A democracia vale em todos os sentidos. Não há ordem de cima para baixo. “A socialização no nosso assentamento é na produção, no cuidado com os animais e plantações. Tudo é coletivo. O trabalho é todo feito da forma mais dividida possível”, afirma.
O Lanceiros Negros oferece 16 hectares (um hectare equivale a 10 mil metros quadrados) para cada família trabalhar e fazer as suas plantações coletivas e individuais. Há no local também uma APP (Área de Preservação Permanente) de mato fechado, que não sofre nenhuma agressão e é cuidada com respeito total. “Meio ambiente saudável e respeitado é uma obrigação de todos nós”, diz ela. Na enchente de maio/24, o grupo de assentados não teve grandes perdas. “Perdemos só parte da plantação de milho que fica localizada próxima da BR-290. E também duas vacas, por falta de pasto. As casas e o galpão ficam no alto e nada sofreram.”
Jercedina é uma personagem interessante, brava, uma guerreira dos assentamentos dos trabalhadores rurais existentes pelo Rio Grande. Sempre ao lado do marido Sérgio, que tem uma história de lutas no movimento. Os pais do seu parceiro de vida, por exemplo, estão assentados na Fazenda Annoni, histórico e pioneiro lugar dos sem-terra. Fala com desenvoltura sobre todos os assuntos. Sabe o que está acontecendo e tem opinião. Para aumentar a renda da família de cinco pessoas, ela também faz serviços domésticos em casas de famílias conhecidas/indicadas em Porto Alegre.
“A vida me ensinou a fazer de tudo um pouco”, diz. Entende de carpintaria, padaria, açougue, plantação de qualquer coisa. Bota a mão na massa sem qualquer receio ou cansaço. Está disposta para qualquer empreitada.
“Desde cedo estamos na luta do MST. No trabalho coletivo, socializado e vencendo e superando barreiras a cada dia. Aqui no Lanceiros Negros nos sentimos vitoriosos”, finaliza.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo