A economia venezuelana termina 2024 cumprindo uma meta que foi repetida pelo governo ao longo de todo o ano: crescer com ou sem sanções. A gestão de Nicolás Maduro usou desse discurso não só para tranquilizar o mercado e impulsionar uma estabilidade econômica, mas também para demonstrar resultados que foram cruciais para a melhoria da qualidade de vida, a retomada de programas sociais e uma vitória eleitoral ainda contestada pela oposição.
O primeiro e mais importante índice de impacto direto para a população foi a inflação. O aumento dos preços desacelerou em 2024, seguindo um ritmo já marcado no final de 2023. O último dado oficial divulgado pelo Banco Central do país foi de outubro. Neste período, o Índice de Preços ao Consumidor foi de 4% ao mês. A inflação acumulada de 2024 terminou o 10º mês do ano em 16,6% enquanto a anualizada (de outubro de 2023 a outubro de 2024) foi de 23,6%.
Todos esses dados foram um trunfo para o governo venezuelano que já chegou a enfrentar uma inflação mensal de 196,6% em janeiro de 2019.
Se durante o ano a inflação desacelerou, nos últimos três meses a expectativa é de alta. Os resultados de novembro e dezembro ainda não foram divulgados pelo Banco Central, mas institutos privados já projetam aumentos nos preços. O Observatório Venezuelano de Finanças estima que a inflação de novembro tenha sido de 12,5%, enquanto a de dezembro deve ser ainda maior.
As estimativas são compartilhadas pelo próprio governo, que entende ser um fenômeno esperado por algumas razões, sendo o grande motivo a relação entre a inflação venezuelana com o câmbio. O valor do dólar esteve estável em cerca de 36 bolívares durante 2024, o que ajudou a segurar o aumento dos preços. Em uma economia com grande participação de moedas estrangeiras, os preços dos produtos passaram a ser cobrados em dólares.
Com isso, se o valor do dólar muda, o poder de compra dos venezuelanos que recebem em bolívares também muda. Sem uma alteração significativa ao longo do ano, a tendência foi de manutenção nos preços. Nos últimos meses de 2024, no entanto, a moeda venezuelana perdeu valor frente à estadunidense, e 1 dólar chegou a custar 52 bolívares no último dia do ano.
Esse movimento jogou a inflação para o alto em uma elevação que deve continuar para o começo de 2025. Ao Brasil de Fato, o sociólogo e mestre em comunicação política Franco Vielma explica que essa desvalorização cambiária interna responde a três fatores. Primeiro o aumento da liquidez venezuelana. Com o final de ano, grande parte da população recebe as chamadas bonificações e os benefícios trabalhistas, como o 13º salário. Isso amplia a circulação de moeda local, o que reduz o valor do bolívar frente ao dólar.
Houve também um aumento da atividade creditícia. Mesmo que o uso do crédito ainda seja pequeno na Venezuela em relação a outros países latino-americanos, subiu 103% em 2024. O aumento no consumo também fez subir a demanda, o que empurrou a inflação para cima.
Há também um ajuste natural do câmbio. O Banco Central usou durante o ano uma ferramenta comum a outras autoridades monetárias no mundo para controlar o câmbio, que é a injeção de dólares no mercado. Só em outubro, por exemplo, foram US$ 260 milhões vendidos pelo BC venezuelano.
Com isso, o valor do bolívar foi contido de maneira artificial e muitos economistas ligados ao governo estimam que o valor real da moeda estadunidense deveria estar em 120 bolívares, não fossem as intervenções oficiais. Isso também decorre de um terceiro fator, que é o mercado paralelo. Como o Estado não tem capacidade para suprir a demanda total da população por dólares, muitos agentes econômicos passaram a buscar o mercado paralelo para comprar as divisas.
Essa busca leva a uma especulação cada vez maior do dólar e os agentes econômicos passam a usar a instabilidade política da Venezuela para manipular o valor da moeda.
“O Estado venezuelano cumpre com seus compromissos em moeda nacional, então o que faz é vender divisas para comprar bolívares. Então é natural, já que uma das melhores maneiras para o financiamento do Estado é vender divisas porque precisa de bolívares para cumprir com os compromissos em moeda nacional. Outras opções seriam usar bolívares arrecadados de impostos ou fabricar bolívares de maneira artificial, aumentando o nível de endividamento, o que seria a financeirização do déficit fiscal. Essa não é uma medida que o governo está praticando, por causa da batalha contra a liquidez”, disse Vielma ao Brasil de Fato.
A estabilização do câmbio ajudou também a aumentar o uso do próprio bolívar no país. Segundo relatório do instituto Ecoanalitica, as transações com moedas estrangeiras representaram menos de 25% de todas as trocas comerciais em novembro de 2024, uma redução em relação aos 61,7% registrados em 2021.
Estabilidade política
Grande parte dessa incerteza trabalhada pelos agentes econômicos teve como contexto um pano de fundo político. Depois das eleições, a oposição questionou o resultado que deu a vitória ao presidente Nicolás Maduro para um terceiro mandato. Manifestações de rua violentas marcaram os dias seguintes ao pleito e países do Ocidente governados pela direita não reconheceram a vitória eleitoral do chavismo.
Este cenário levou a uma corrida ainda maior pelo dólar, o que ampliou a pressão no mercado paralelo pela moeda estadunidense. Muitas das páginas e sites que fazem a cotação paralela são de grupos ligados a setores empresariais que tem o interesse também em aumentar a instabilidade econômica depois da eleição de Maduro.
Para Franco Vielma esse cenário vai permanecer no começo de 2025 porque a oposição joga com essa incerteza e aproveita a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, para colocar ainda mais insegurança sobre a economia local. Ele afirma, no entanto, que a oposição não tem força para uma nova mobilização violenta no período da posse de Maduro, prevista para 10 de janeiro.
“Neste caso, a ordem dos fatores altera o produto. A movimentação pós-eleitoral contribui para a incerteza e a desestabilização econômica. Mas isso se debilitou. A oposição não tem força política para criar essas condições agora. Mas está certo que no começo do ano o dólar paralelo vai aumentar. O oficialismo diz que isso é um uso do dólar como arma para o 10 de janeiro. Mas também muitos agentes econômicos estarão com muitos bolívares e vão buscar dólares, o que vai impactar na inflação”, afirmou.
Crescimento econômico em alta
Depois de uma longa recessão, resultado das sanções impostas pelos Estados Unidos ao setor petroleiro da Venezuela, o país caribenho enfrenta uma recuperação gradual de seu ritmo de crescimento. Para o governo, a expectativa é que 2024 termine com um aumento no PIB de até 9%.
De acordo com a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), a Venezuela deve ter um crescimento de 6,2% do PIB em 2024. Segundo a instituição, esse será o maior crescimento do PIB da América do Sul no ano.
Além de uma expansão da produção industrial de 15,9% de acordo com a Conindustria, grande parte desses dados são resultado de uma série de medidas do governo venezuelano, especialmente algumas voltadas para o setor petroleiro.
As sanções impostas pelos Estados Unidos fizeram despencar a produção petroleira. De acordo com o governo de Nicolás Maduro, em janeiro de 2015 eram produzidos 2,5 milhões de barris diários de petróleo. Em 2020 esse número caiu para 339 mil. Com tudo isso, Caracas diz que o impacto foi de US$ 642 bilhões no PIB venezuelano de 2015 a 2022. Para efeito de comparação, o PIB da Venezuela em 2023, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi de US$ 92,2 bilhões.
Para aumentar a entrada da moeda estadunidense, as empresas venezuelanas passaram em 2020 a usar ferramentas para driblar o bloqueio e garantir a venda de petróleo para o mercado internacional. Um dos recursos para isso foi criar empresas intermediárias e vender a commodity por triangulação com o mercado asiático. Ainda assim, o produto tinha um desconto de quase 40% se comparado aos preços do mercado internacional.
Segundo Vielma, isso faz parte de uma medida de proteção frente a um bloqueio ilegal e já é uma ferramenta incorporada pelas empresas para conseguirem atuar sem a ingerência estadunidense. “As triangulações já se mantiveram, não tem empresas russas e chinesas que têm licenças para poder realizar atividades com petróleo venezuelano. Só empresas estadunidenses, europeias e indianas têm licenças”, afirmou.
As licenças que ele se refere também ajudaram a economia venezuelana. Depois da assinatura do acordo de Barbados entre o governo e oposição, em outubro de 2023, os Estados Unidos passaram a permitir a atuação de algumas empresas estrangeiras no mercado petroleiro da Venezuela e a própria venda do produto venezuelano para outros países.
A primeira delas foi a licença 44, que permitia que a Venezuela negociasse petróleo no mercado internacional. Com isso, empresas que quiserem negociar com a petroleira PDVSA terão que ter o aval da Agência de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC) do Departamento do Tesouro dos EUA.
A licença 44 foi substituída em abril pela 44A, que determina que as empresas que mantêm negócios com a PDVSA devem encerrar as atividades até 31 de maio e pedir autorização da OFAC para retomar os negócios. Na prática, é uma forma de tornar o processo de negociação mais burocrático com a estatal venezuelana.
Isso tudo impulsionou o mercado petroleiro e a produção venezuelana. Segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o país produziu em outubro cerca de 989 mil barris diários. O dado mostra uma recuperação em um contexto no qual o governo pretende fechar o ano com uma média de 1 milhão de barris diários.
Perspectivas para 2025
Internamente, a avaliação é que há um espaço ainda maior para crescer no ano que vem. Com o know how da indústria petroleira, a ideia é que, mesmo com uma postura agressiva do governo de Donald Trump, a economia venezuelana de 2025 não será a mesma de 2019.
Vielma concorda com essa avaliação e afirma que o país passou por uma diversificação importante do sistema produtivo que também ajudou a abandonar a dependência da venda de petróleo para outros países.
“As relações estruturais de dependência da renda petroleira não existem da mesma forma hoje. A economia venezuelana conseguiu diversificar e superar mecanismos de dependência da renda. A arrecadação com impostos ficou em 2024 acima dos 11 bilhões de dólares. O estado venezuelano tem importantes fontes de recursos que não existiam no começo das sanções. De lá para cá, começaram as medidas evasivas e isso coloca, de alguma maneira, fortalezas para a economia”, afirmou.
Ainda assim, a equação da economia venezuelana depende de uma postura dos Estados Unidos para ser medida com precisão. Até o momento, o presidente eleito Donald Trump afirmou que não comprará mais petróleo da Venezuela. Para Vielma, no entanto, ele deixou aberta a margem para uma aproximação.
“Isso não quer dizer que vai, por exemplo, cancelar a licença da Chevron, que vai continuar colocando petróleo venezuelano no mercado internacional. Esse é um cenário de sanções moderadas. Trump também afirmou que ia pressionar economicamente Caracas se Maduro não aceitasse receber migrantes venezuelanos deportados dos EUA. Com isso, há um equilíbrio entre o pragmatismo e a pressão econômica. Ele assume que Maduro tem as rédeas para definir isso a partir do momento em que fala sobre a migração”, disse.
Edição: Lucas Estanislau