As secas históricas que afetaram a Amazônia nos últimos dois anos reacenderam o debate sobre a necessidade de repavimentação da rodovia BR-319. A estrada liga Manaus (Amazonas) a Porto Velho (Rondônia). Na prática, ela é a ligação terrestre da capital amazonense com o restante do país. A obra poderia dar fim ao isolamento da região – que já dura quase 30 anos -, mas um longo histórico de promessas não cumpridas e embates na Justiça continua travando a sua realização.
Em meio à seca que afetou a Amazônia por dois anos seguidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu retomar as obras na estrada, durante uma visita a Manaus, em setembro do ano passado. A repavimentação do trecho mais crítico, no entanto, não deve iniciar tão cedo. O Ministério dos Transportes afirma não ter previsão de obras de repavimentação para 2025.
A estrada tem aproximadamente 900 quilômetros, é cercada por áreas preservadas da floresta amazônica, é pavimentada nos dois extremos, mas não tem asfalto em cerca de 400 quilômetros, o chamado “trecho do meio”.
Além do trecho sem asfalto, duas pontes desabaram em 2022 e ainda não foram reconstruídas. O desabamento de uma delas, que fica sobre o rio Curuça, deixou cinco mortos. Desde então, são utilizadas balsas para fazer a travessia nos dois pontos.
Mesmo nessas condições, o trânsito se mantém de forma precária em toda a extensão da BR-319. Há restrições para o tráfego de veículos de carga e de passageiros com mais de 23 toneladas.
A determinação, em vigor desde agosto de 2024, foi imposta pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e sua vigência é por tempo indeterminado. Em nota publicada após a publicação da restrição, O DNIT afirmou que “a medida visa assegurar e manter um tráfego seguro na rodovia, aliado às condições de capacidade operacional do segmento não pavimentado da BR-319”.
A restrição não afetou serviços básicos e essenciais, como transporte de alimentos, combustível e de socorro, independente do peso, que seguem autorizados a circular. A Associação dos Amigos e Defensores da BR-319 estima que entre 300 e 400 carretas passaram pela rodovia todos os dias durante os meses de setembro e outubro de 2024.
História da estrada na Amazônia é envolta em abandono, embates e promessas
A BR-319 foi inaugurada em 1976, com asfalto em toda a sua extensão. Ela fazia parte de um plano de integração nacional do governo do ex-presidente Ernesto Geisel. Com a obra, o governo pretendia garantir que a Amazônia fosse ocupada e houvesse controle sobre todo o território do país. No entanto, ao longo da década de 80, a estrada foi abandonada pelo governo e, sem reparos, se deteriorou. Com isso, os custos do transporte terrestre se tornaram muito altos, se comparados a utilização dos rios para escoamento da produção.
Há ainda depoimentos de moradores antigos da região que afirmam que a estrada teria sido alvo de explosões na década de 1980. Nos depoimentos, gravados em vídeos e divulgados nas redes sociais, moradores dizem que donos de balsas teriam usado dinamites para destruir o asfalto em nome da “preservação da Amazônia”. A intenção seria impedir a utilização de pontes da estrada, mantendo o negócio das balsas. Há ainda quem diga que as explosões teriam sido promovidas por políticos ambientalistas. O caso nunca foi investigado, mesmo com pedidos feitos ao Ministério Público Federal pela Associação dos Amigos e Defensores da BR-319, por exemplo.
“Eu já questionei a Justiça sobre essas explosões. Por que ninguém procura saber disso? Houve crime ambiental e esse crime não prescreve. A BR foi explodida. Quantos animais morreram, quantos problemas da fauna aconteceram por causa da explosão? A Justiça se cala diante desse crime que aconteceu no passado”, afirma o presidente da Associação, André Marsilio.
Após o período de abandono, que se estendeu do final da década de 1980 até 2007, houve apenas investimentos em reformas dos trechos inicial e final da estrada. Manutenções emergenciais, como o cascalhamento (colocação de pedras) nos trechos onde não há mais asfalto também são realizados esporadicamente.
Atualmente, a situação da rodovia faz com que sejam necessárias no mínimo 14 horas para percorrer seus 900 quilômetros, quando não há chuvas e atoleiros. Se a estrada estivesse toda asfaltada, esse percurso poderia ser feito em menos tempo.
Desde o começo dos anos 2000, os entraves para a reconstrução da rodovia passaram a se concentrar na exigência de licenciamento ambiental. Com ONGs contrárias às obras na Amazônia movendo ações na Justiça para paralisar o processo de obtenção das licenças, a história vem se arrastando ao longo das décadas.
Os problemas gerados pela situação da BR-319 têm se multiplicado. Durante a pandemia do coronavírus, por exemplo, Manaus viveu uma crise de falta de oxigênio hospitalar causada pelo isolamento da cidade. Na época, o oxigênio levado pelos rios não chegava a tempo e os aviões não foram suficientes para suprir a demanda que chegou a aumentar em quase 6 vezes, passando de 12 mil metros cúbicos/dia, antes da doença, para 70 mil metros cúbicos/dia em um dos picos em 2021. Autoridades locais disseram que se a rodovia estivesse em boas condições, mais vidas poderiam ter sido salvas.
O caso foi mencionado inclusive em decisão recente que liberou a licença prévia para o “trecho do meio”, que estava suspensa até outubro de 2024. “Não há dúvidas de que as carretas demorariam menos tempo trafegando pela BR-319, se ela estivesse pavimentada”, avaliou o desembargador Flávio Jardim, responsável pela decisão.
Há dois anos, com a intensificação das secas na região, a população viu as dificuldades de locomoção aumentarem, passando a ter problemas durante todo o ano. No período seco, com dificuldade para deslocar tanto pessoas como produtos pelos rios, a rodovia é tomada por uma longa fila de caminhões envoltos em poeira.
O problema se agrava também onde não há pontes sobre os rios e as balsas não conseguem fazer as travessias pela falta de água. Assim, a seca deixa comunidades isoladas, sem acesso a abastecimentos diversos. Nos pontos onde é possível navegar, as balsas lotadas não dão conta do fluxo de carros e caminhões.
Já no período chuvoso, os trechos sem asfalto ficam intransitáveis e quem se arrisca a utilizar a rodovia está sujeito a acidentes em meio a muita lama e buracos. Os casos de acidentes nesse período são constantes. Moradores da região relatam, por meio das redes sociais, tombamentos de caminhões carregados, atolamento de todo o tipo de veículos e até mortes.
Obras no “trecho do meio” da BR-319 não iniciarão em 2025
Em setembro de 2024, ao visitar o Amazonas e se comprometer em retomar as obras na BR-319, o presidente Lula enfatizou o problema gerado pelas secas na Amazônia. “Nós temos consciência que, enquanto o rio estava navegável, cheio, a rodovia não tinha a importância que tem, enquanto o Rio Madeira estava vivo. E nós não podemos deixar duas capitais [Manaus e Porto Velho] isoladas. Mas nós vamos fazer com a maior responsabilidade e queremos construir uma parceria de verdade”, disse Lula.
As promessas sobre a repavimentação são recebidas com desconfiança pelos moradores da região. O ex-caminhoneiro Joel Costa da Silva, que se dedica a mostrar o que acontece na estrada no meio da Amazônia ao viajar de moto, diz não acreditar no início da obra. “Só acredito quando o asfalto já estiver sendo aplicado”, disse Silva.
De fato, a promessa do presidente não deve se concretizar em 2025. De acordo com o Ministério dos Transportes, não há previsão de execução de obras no “trecho do meio” neste ano. “Em relação ao trecho do meio (km 250 a 620), o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) atua para avançar na elaboração dos projetos para a futura pavimentação”, afirmou o ministério em resposta aos questionamentos feitos pela Gazeta do Povo.
Por enquanto, somente ações emergenciais de compactação do solo são realizadas no trecho sem asfalto. Obras de reparos foram retomadas em alguns trechos desde setembro e devem seguir durante o ano. O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo Pac) prevê o investimento de R$ 174 milhões na rodovia BR-319 em 2025. Os serviços já contratados, no entanto, vão permitir a pavimentação do trecho entre o km 198,9 e o km 218,2, ou seja, menos de 20 quilômetros. Assim, todo o “trecho do meio”, de cerca de 400 km, seguirá sem asfalto.
Ministério dos Transportes afirma que estrada na Amazônia é tratada como prioridade
Após a liberação da licença prévia para a repavimentação da rodovia em outubro, o Ministério dos Transportes apontou que aceleraria a retomada das obras. “Essa decisão certamente traz segurança jurídica para o andamento do licenciamento, buscando a realização das obras na BR-319, tão importantes para o desenvolvimento socioeconômico da região e para a preservação ambiental dos ecossistemas que margeiam a rodovia”, afirmou o consultor jurídico do Ministério dos Transportes, Marconi Filho.
Em 2023, o Ministério dos Transportes coordenou um grupo de trabalho da BR-319 com o intuito de apresentar uma estratégia para viabilizar o licenciamento ambiental da pavimentação da estrada na Amazônia. O relatório, publicado em junho de 2024, enfatiza que há espaço para realização do projeto com sustentabilidade.
“O documento define um plano para o cumprimento das condicionantes ambientais estabelecidas na Licença Prévia com o objetivo de obter a Licença de Instalação (LI) necessária para o início das obras”, afirma o ministério.
Agora, no entanto, o Ministério do Transportes afirma que está trabalhando em parceria com a pasta de Marina Silva. “Essa parceria busca tanto atender às condicionantes ambientais, quanto estabelecer um Plano de Governança voltado para a regularização ambiental e fundiária, integrando diversas esferas de governo – federal, estadual e municipal. O objetivo é implementar medidas de monitoramento e controle ambiental, ordenamento fundiário e territorial, além de promover atividades produtivas sustentáveis”, afirmou o Ministério dos Transportes à Gazeta do Povo.
Compromisso de Lula com BR-319 desagrada ambientalistas
A reconstrução do asfalto no trecho mais longo e precário da rodovia BR-319 coloca em lados contrários os ambientalistas e o desenvolvimento da região. Ao firmar o compromisso de retomar as obras da estrada na Amazônia, Lula desagradou à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e aos ambientalistas, pois eles veem a obra como um “passe livre” para a destruição da floresta. Marina se apoia no discurso de ONGs que apontam que o asfaltamento da rodovia vai ampliar o desmatamento na área, que é considerada a mais preservada da floresta amazônica.
A alegação dos ambientalistas é de que a pavimentação da estrada vai trazer como impacto a indução descontrolada de desmatamento, grilagem e crimes ambientais. Ao se opor aos defensores da repavimentação, o Observatório do Clima, que reúne mais de 120 ONGs, argumenta que “grandes empreendimentos concretizados em contextos semelhantes trouxeram ainda mais concentração de renda nas mesmas poucas mãos de sempre, agravando a desigualdade da estrutura fundiária brasileira, atingindo negativamente pequenos produtores rurais e populações tradicionais e provocando danos ambientais”.
Os entraves para a reconstrução da BR-319 são motivados por essas ONGs, financiadas em grande parte por interesses internacionais, que movem ações na Justiça contra as obras. ONGs são responsáveis por tentar impedir até mesmo ações emergenciais, que garantem condições mínimas de trafegabilidade na rodovia.
Apesar da narrativa ambientalista, o Ibama aponta que manter a rodovia nas condições atuais também traz impactos ao meio ambiente. Sem as obras que envolvem a repavimentação, problemas como a erosão, a perda de nutrientes do solo próximo da rodovia e o soterramento das plantas que ficam nas margens se agravam.
Com a reconstrução, o projeto deve incluir sistemas de drenagem e contenção das margens, evitando a degradação. Além disso, passarelas e grades vão permitir que os animais se desloquem pela floresta, evitando acidentes.
Estudos realizados pelo Ministério dos Transportes entre o final de 2023 e o início de 2024 indicam que a obra de repavimentação do “trecho do meio” da rodovia na Amazônia incluirá a colocação de aproximadamente mil quilômetros de cercas e mais de 170 passagens aéreas e subterrâneas para animais.