Justiça dá permissão inédita para cultivo de cannabis no Brasil


Decisão da 2ª Vara Federal de Sergipe atende a pedido da associação Salvar e permite o cultivo e produção de flores, extratos e comestíveis de maconha em território nacional

Uma decisão inédita da Justiça de Sergipe autorizou a associação sem fins lucrativos Salvar a “realizar o cultivo, manipulação, preparo, produção, armazenamento, transporte, dispensa e pesquisa da cannabis sativa […] para fins de tratamento exclusivo de seus associados”, conforme prescrição médica.

O despacho publicado nesta 4ª feira (22.mar.2023) foi obtido pelo Poder360. É assinado pelo juiz federal Ronivon de Aragão, da 2ª Vara Federal de Sergipe, e corre em segredo de Justiça. É a 1ª permissão dada por um tribunal brasileiro para o plantio e comercialização de flores, extratos e comestíveis de cannabis em território nacional.

O advogado responsável pela petição apresentada pela Salvar, Paulo Henrique Thiessen, disse que a estratégia foi ampliar o leque de permissões já concedidas por tribunais no país a outras instituições ligadas à maconha medicinal. 

Pelo menos 6 associações obtiveram autorização para a produção e comercialização de óleos medicinais à base de CBD (canabidiol) no Brasil nos últimos anos, mas outras derivações da planta eram restritas à encomenda no mercado internacional. 

Segundo Thiessen, o argumento mobilizado foi de que as resoluções da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que regulam sobre a importação de produtos de cannabis privilegiavam empresas estrangeiras e impediam a democratização do acesso aos remédios pelo alto custo de aquisição. 

O advogado disse não haver justificativa legal para autorizar um tipo de medicamentos à base de maconha e restringir a permissão de outros.

“O que muda é a manipulação e distribuição. Pouco importa se a dipirona é na veia, em cápsula ou gel. Se precisar muito rápido, será na veia. Mas a competência para decidir é do médico”, disse. 

A decisão estabelece prazo de 15 dias para a Salvar se adequar às seguintes normas:

  • RDC 301/2019 – dispõe sobre as Diretrizes Gerais de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos; 
  • RDC 430/2020 – dispõe sobre boas práticas de distribuição, armazenamento e transporte de medicamentos;
  • RDC 654/2022 – dispõe sobre as BPF (boas práticas de fabricação) de IFAs (insumos farmacêuticos ativos);
  • RDC 69/2014 – também dispõe sobre as BPF de IFAs;
  • RDC 327/2019 – dispõe sobre os procedimentos para a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de cannabis para fins medicinais;
  • RDC 24/2011 – dispõe sobre controle de qualidade exigido na legislação fitofármacos, categorizados como medicamentos específicos; 
  • RDC 26/2014 – dispõe sobre controle de qualidade exigido na legislação para fitoterápicos;
  • Portaria 344/1998 – regulação técnica sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.

Há ainda período de manifestação de 60 dias para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Ministério da Saúde estabeleçam procedimentos de fiscalização e adequação sanitária na produção e manufatura da cannabis pela Salvar. 

Segundo Thiessen, a associação já está cumprindo medidas legais para atender às exigências no prazo e expandir a oferta de produtos a pacientes associados. 

A decisão vem na sequência de uma iniciativa da Alese (Assembleia Legislativa de Sergipe), que aprovou por unanimidade na última 4ª feira (15.mar) projeto de lei que institui a Politica Estadual de Cannabis para fins terapêuticos.

O texto dá incentivos a pesquisas sobre o tema e prevê a capacitação de profissionais da rede estadual de saúde para prescrição de medicamentos canábicos.

SALVAR

A Salvar, ou Associação Brasileira de Apoio ao Cultivo e Pesquisa de Cannabis Medicinal, foi fundada em 2019. Tem cerca de 200 associados. Sua principal cliente é a Abrace Esperança –maior associação ligada à cannabis medicinal no país, com mais de 30.000 associados.

Em seu site, a Salvar diz ser responsável pelo cultivo da planta, por laboratórios de manipulação e pelo atendimento, apoio jurídico e orientação médicas a clientes. É possível se associar por meio deste link em 4 modalidades: paciente, tutor, pesquisador ou paciente menor de idade.

Segundo a petição protocolada na 2ª Vara Federal de Sergipe, a instituição fornece medicamentos para auxiliar no tratamento de pessoas com alzheimer, ansiedade, autismo, câncer, demência, depressão, epilepsias diversas, esclerose múltipla, fibromialgia e TDHA, entre outras doenças.

“A Salvar já é uma realidade. Ela já cultiva cannabis em Sergipe e, de forma corajosa, brilhante e inspiradora, realiza o fornecimento de medicamentos fitoterápicos a preço de custo para ao menos 120 famílias de forma mensal, tanto em humanos como para uso veterinário, sempre exigindo dos pacientes a prescrição de profissional de saúde legalmente habilitado e regularidade associativa”, disse a associação na petição protocolada.  

“Portanto, roga-se a este Douto Juízo, e demais eventuais servidores, julgadores, membros do Ministério Público, sociedade civil, cidadãos, advogados, defensores da União, todos, tenham um olhar humano sobre a presente demanda, independente de crença sobre a cannabis, se colocando no local dos pacientes, tanto os já existentes no presente como os do porvir, pois, ela é extremamente importante para que nossa sociedade avance, se tornando mais justa, em especial nos valores supracitados.”

CASO NÃO TEM RELAÇÃO COM DECISÃO DO STJ

Na 2ª feira (20.mar.2023), o STJ (Superior Tribunal de Justiça) aprovou uma proposta para concentrar a competência sobre o cultivo de cannabis para fins medicinais e industriais no Brasil. Eis a íntegra da decisão (258 KB).

Na prática, isso significou que o órgão atribuiu a si o poder de decisão da matéria, mesmo sem uma legislação emitida pelo Congresso Nacional. 

Thiessen explica que o procedimento não tem relação com o despacho da Justiça do Sergipe, já que a decisão do STJ regula os processos relacionados ao plantio de cânhamo no país. 

A planta também provém da cannabis, mas tem teor irrisório de THC (Tetrahidrocanabinol), principal substância psicoativa da maconha, e é mais usada para a produção de tecidos, materiais de construção, suplementos, itens de higiene pessoal e outros produtos manufaturados.

“O objeto do STJ é exclusivo para o cânhamo e o CBD. Ou seja, produtos que não têm acima de 0,2% de THC”, afirmou o advogado. 





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