Na noite deste domingo (29), indígenas do povo Ava Guarani foram atacados com bombas caseiras, tiros e tiveram uma casa incendiada no município de Guaíra, no oeste do Paraná. O ataque partiu de três homens em motos e atingiu a comunidade Yvy Okaju, também chamada de Y’Hovy, área que integra a Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá e que, com o processo demarcatório estagnado, foi retomada pelos indígenas.
Na tarde desta segunda-feira (30), a Polícia Federal (PF) foi ao local para fazer uma perícia e encontrou ao menos 12 cápsulas de bala. Em um vídeo gravado também nesta segunda, uma liderança Guarani registra dois homens em uma moto dentro da comunidade, que gritam “vai chegar meia-noite”. Os indígenas temem que haja um novo ataque depois que o sol baixar. “Essas ameaças são graves. A gente tem receio que possa acontecer um ataque com um grande número de pessoas armadas”, salienta o cacique Wellington*.
O conflito na região é recorrente, mas se intensificou no último dia 5 julho, quando os indígenas fizeram sete ampliações do território que, apesar de não demarcado, já foi delimitado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Desde 27 de agosto, os Ava Guarani convivem com um acampamento de não indígenas que se estruturou na mesma área, com o intuito de intimidar o avanço do povo originário sobre seu território tradicional.
Em um áudio que circula pelas redes sociais e que teria sido enviado em um grupo de WhatsApp deste acampamento, um homem afirma que “enquanto não matar uns dez caras desse aí, vai continuar essa patifaria aí”. Na mesma frase em que diz “não estar incentivando”, o homem ressalta que “enquanto isso não acontecer, vai ficar essa patifaria aí, índio querendo invadir tudo aí. Eles têm que saber aqui quem manda, não é só a lei lá de cima, não”.
De acordo com os Avá Guarani ouvidos pelo Brasil de Fato e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), por volta das 18h30 deste domingo (29), os indígenas de Y’Hovy começaram um mutirão para construir duas casas dentro do limite da retomada estabelecido provisoriamente pela Força Nacional e a Polícia Federal. Foram, então, ameaçados por não indígenas, que disseram que se organizariam para voltar.
“Ao cair da noite, começaram a se reunir em bastante gente. Vieram muitos carros da cidade para a vila, inclusive em alta velocidade. E aqueles não indígenas que estavam xingando, logo depois que chegaram mais carros, começaram a se somar a essas pessoas e pouco tempo depois começaram a dar tiros de pistola. Tiros sequenciais, um atrás do outro, a gente percebe que é uma arma semi-automática”, relata cacique Wellington.
“A Força Nacional esteve no local, falou com algumas lideranças e falou que não poderiam ficar ali, porque teriam que receber ordens de Brasília”, critica a liderança Guarani. Enquanto os agentes estavam presentes, conta Wellington, “eles [os não indígenas] só estavam xingando e gritando. Mas depois que a Força Nacional saiu do local, eles entraram”, diz.
“No local do conflito entraram três homens armados dando tiros e eles queimaram um dos barracos”, descreve Wellington. Um vídeo mostra o barraco sendo incendiado ao som dos cantos sagrados Avá Guarani, entoados pela comunidade atacada. “Entraram atirando, cada um deles estava com uma pistola”, denuncia o cacique. Segundo ele, quando viaturas policiais retornaram ao local, os agressores se esconderam.
“Não teve nenhum ferido, mas os tiros foram disparados a 25 metros do último barraco, mais próximo ao asfalto, a uma altura para matar. Assim confirma a família que foi atacada. Eles sobreviveram porque se ampararam atrás de uma árvore e da terra, ao lado do barraco”, atesta o padre Diego Pelizari, do Cimi, após visitar a comunidade nesta segunda-feira (30).
Ao longo do segundo semestre de 2024, as comunidades da TI Guasu Guavirá sofreram ataques armados, foram cercadas por fazendeiros com tratores, tiveram dois indígenas atropelados por caminhonetes e sete baleados por armas letais.
“Serão noites de angústia e desespero para os Ava Guarani nesse final de ano. Até quando?”, postou Roberto Liegbott, também membro da regional Sul do Cimi. “A equipe da Força Nacional, que atua na região – de acordo com as informações – não tem demonstrado interesse em conter a violência e, talvez, seja por isso mesmo que os Ava são atacados com persistência”, alerta a entidade.
“Precisamos que reforcem o pedido para que a Força Nacional atue corretamente, principalmente aqui na ampliação Y’Hovy que todos já sabem que aqui a situação é bem crítica desde o começo”, pede Nina Ava Guarani*, outra liderança da retomada, para apoiadores. “Quando tem conflito direto, eles não estão conseguindo parar esses ataques. Porque eles vieram atirando e nenhuma viatura da Força Nacional estava presente aqui”, alerta.
A reportagem entrou em contato com o Ministério da Justiça para pedir informações sobre a atuação da Força Nacional no local, mas não teve resposta até o fechamento da matéria. Caso a pasta se manifeste, o texto será atualizado.
A TI Guasu Guavirá
Localizada nas cidades de Guaíra (PR), Terra Roxa (PR) e Altônia (PR), a TI Tekoha Guasu Guavirá teve seus 24 mil hectares identificados e delimitados pela Funai em 2018. Sobre a área indígena há 165 fazendas. O processo demarcatório está suspenso por um pedido das prefeituras de Guaíra e Terra Roxa acatado pela primeira instância da Justiça Federal.
A continuidade da regularização do território segue impedida até que venha das instâncias superiores a decisão final sobre o processo judicial. Enquanto isso, cansados de esperar “as promessas vazias dos brancos”, como afirmou uma das lideranças ao Brasil de Fato, os Ava Guarani vêm retomando áreas do seu território. A aldeia Yvy Okaju reivindicada pelos indígenas tem 200 hectares.
Na década de 1970, os Ava Guarani foram expulsos pela instalação da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que submergiu parte do território. Atualmente há uma negociação em curso, travada pelo imbróglio judicial, para que a Itaipu adquira fazendas sobrepostos à TI como forma de reparação territorial aos indígenas.
Em uma carta ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Funai, Ministério Público Federal (MPF) e outras entidades, a comunidade Guarani de Y’Hovy cobrou da Itaipu “celeridade maior em adquirir terras” e que a população de Guaíra pare de “os odiar”: “a perseguição não é a solução”. O documento foi escrito em 25 de outubro, um dia antes de um ato contra os indígenas convocado pelo Sindicato Rural do Mato Grosso do Sul e do Paraná.
*Nome alterado para a preservação da fonte.
Edição: Martina Medina