Apesar de haver elementos que podem configurar crimes contra a honra, a imunidade parlamentar do deputado federal Marcel Van Hattem (Novo-RS) tende a protegê-lo de ser condenado judicialmente em processo envolvendo discursos no plenário da Câmara contra o delegado da PF Fábio Shor, na interpretação de especialistas ouvidos pela Folha.
Eles argumentam, entretanto, que o STJ (Superior Tribunal Federal) e o STF (Supremo Tribunal Federal) já se posicionaram sobre restrições da garantia constitucional, que não é absoluta. Dizem também não enxergar abuso de autoridade pela PF com o indiciamento.
O indiciamento gerou a reação de parlamentares, e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse nesta quarta-feira (27) que a Casa vai analisar se houve abuso de autoridade. A PF também investiga o deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB) sobre discursos na tribuna, segundo apurou a Folha.
Van Hattem foi indiciado no dia 13 de novembro sob suspeita de calúnia e injúria. Isso aconteceu em razão de discursos proferidos na Câmara nos dias 14 de agosto, 15 e 16 de outubro e também por causa de mensagens na internet.
O discurso que deu origem ao inquérito foi o de 14 de agosto. Nele, o parlamentar chamou Shor de “abusador de autoridade” e “covarde”. Afirmou que o delegado teria feito “vários relatórios absolutamente fraudulentos” contra Filipe Martins, ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que foi preso em fevereiro na Operação Tempus Veritatis, e outras “pessoas inocentes”. Na ocasião, o deputado, que é conhecido por críticas ao STF e por ser apoiador ao ex-mandatário, mostrou no plenário uma fotografia do delegado.
Nos discursos posteriores, Van Hattem chamou Shor de “bandido”. Falou que o delegado está “perseguindo”, “ameaçando” e “cometendo crimes” e disse que “a Polícia Federal está dominada pela bandidagem para proteger bandidos”. Declarações chamando o policial de “fora da lei” também foram feitas nas redes sociais.
No relatório, a polícia fala em “franco propósito do deputado Van Hattem em constranger, humilhar e ofender a pessoa DPF Fábio Shor”. Diz também que o parlamentar teria imputado ao delegado a “prática de atos criminosos gravíssimos, acusando-o publicamente de ter forjado relatórios policiais, falseando informações com intuito de prejudicar dolosamente terceiros investigados”.
Van Hattem foi intimado para elucidar os fatos, mas não compareceu, segundo relatório da PF. Em defesa escrita, porém, argumentou que a crítica não era pessoal, mas voltada a ataques à democracia e à liberdade.
A defesa do deputado disse em nota considerar o indiciamento “parcial e ilegal”, além de “violador da imunidade parlamentar”.
À Folha Alexandre Wunderlich, advogado dele, afirmou que a manifestação de Lira se coaduna com a interpretação da defesa sobre a “ilegalidade do indiciamento pela Polícia Federal”. O advogado afirmou esperar que o Ministério Público arquive o caso. “A fala do parlamentar foi de denúncia, de fiscalização e tem nexo de causalidade com a questão política do exercício do mandato.”
Segundo Jordan Tomazelli, mestre em direito processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), falas em plenário ou no exercício do mandato possuem, a princípio, imunidade, mas essa prerrogativa não é absoluta.
Ele argumenta que o STJ e o STF já se posicionaram sobre haver exceções que, de acordo com o especialista, passam por “discursos que visem atacar membros ou pessoas individualizadas para fins de atingir a sua imagem, sem qualquer interesse coletivo”.
“Quando a crítica vem com ofensas pessoais à figura do agente público, pode ser que haja uma violação aos princípios da impessoalidade e da moralidade do artigo 37 da Constituição. Somado a outros princípios que garantem a dignidade da pessoa humana, intimidade e honra, isso pode afastar a regra 53 [que prevê a imunidade] da Constituição”, diz.
O especialista afirma não ver abuso da PF no indiciamento. Ele fala que, segundo a legislação, há abuso quando se instaura uma investigação criminal com manifesta ausência de indícios de autoria e materialidade ou sem justa causa.
Ele, entretanto, não considera ser esse o caso, uma vez que haveria indícios para sustentar a decisão da instituição. “Entendeu-se que o que foi falado em plenário se adequava a essas situações excepcionais que o STF já falou que podem ocorrer”, diz Tomazelli.
Ele afirma que o deputado foi convidado a explicar a acusação sobre relatórios fraudulentos, mas não compareceu, restando à PF o indiciamento sob suspeita de crime contra a honra.
Beatriz Alaia Colin, advogada criminalista e especialista em direito penal e processo penal nacional e europeu pela Universidade de Coimbra, afirma que há um aspecto subjetivo nesses crimes.
Ela diz que o fato de Van Hattem ter falado sobre o tema na Câmara pesa a favor dele, em razão da imunidade parlamentar. Entretanto, entende que a PF não abusa ao indiciá-lo, já que compreendeu haver questões passíveis de investigação.
“O mero indiciamento não pode se tratar de um abuso de autoridade, porque senão a gente acaba também mitigando os próprios poderes da Polícia Federal de investigação”, diz.
Colin, entretanto, afirma considerar uma condenação inadequada neste caso. “Existe o crime, ele só não pode ser punível em razão da imunidade parlamentar. É um excludente de ilicitude”, diz.
Segundo Maira Scavuzzi, advogada de direito constitucional, “o caso toca em um ponto nevrálgico da imunidade material, que sempre foi a grande discussão”.
Ela afirma que, em sua interpretação, o que mais chama a atenção nesse caso é o contexto da discussão. “O que parece é que o deputado está tentando descredibilizar a instituição da PF, em especial desse delegado, a fim de coibir ou tentar frear a instituição nas suas investidas contra atos golpistas”, diz.
O que é imunidade parlamentar e de quais crimes Van Hattem é acusado
Acusações
O deputado federal Marcel Van Hattem (Novo-RS) foi indiciado pela PF sob suspeita de calúnia, quando se diz falsamente que alguém cometeu um crime, e injúria, quando uma pessoa profere xingamento contra outra de forma a atingir a dignidade, honra e moral; Cabo Gilberto Silva (PL-PB) é investigado pelos mesmos delitos, mas ainda não foi indiciado
Texto constitucional
A Constituição define, em seu artigo 53, que deputados e senadores são isentos de enquadramento penal ou civil pelo que dizem e por como votam em propostas legislativas
Foro especial
Assim que tomam posse dos cargos pelos quais foram eleitos, os membros do Congresso Nacional passam a ser julgados pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em caso de quaisquer crimes cometidos durante o mandato
Prisão
Congressistas só podem ser presos em caso de crime em flagrante em algo tipificado como inafiançável; em caso de detenção, os autos do processo são encaminhados à Casa Legislativa do deputado ou senador em até 24 horas, para que os próprios membros decidam se mantêm ou revogam a reclusão. Ainda, o membro do Legislativo fica sob custódia da Polícia Federal
Afastamento e cassação
Uma decisão judicial pode afastar um congressista de seu mandato de forma cautelar, e o STF pode cassar um deputado ou senador em decisão colegiada; ainda, denúncias de crimes podem levar à perda do cargo por quebra de decoro parlamentar, a ser analisada pela Casa Legislativa do congressista
Pós-ditadura
As regras de imunidade parlamentar foram constitucionalizadas no texto de 1988 diante da prática recorrente da ditadura militar, em vigor de 1964 a 1985, de cassar mandatos do Legislativo, especialmente os de oposição ao regime