Os integrantes do grupo de dança Dzi Croquetes, ainda fantasiados e maquiados, bebiam no Bar Jerz, na Galeria Alaska, em Copacabana, Rio de Janeiro. Comemoravam a última apresentação quando, da mesa ao lado, começaram os gritos de “paneleiros”, “bichas” e outros insultos homofóbicos.
Um homem se levantou para defender os dançarinos, o que logo se tornou discussão acalorada. Dois disparos de arma de fogo foram feitos. Um deles acertou a cabeça de Almir Morais de Albuquerque, 35. Há 50 anos, morria Almir Pernambuquinho, personagem único do futebol brasileiro.
Craque, encrenqueiro, brigão, temperamental ao extremo, “Pelé branco” e com a imagem de macho alfa, cultivada por ele mesmo, o meia-atacante perdeu a vida na madrugada de 6 de fevereiro de 1973, graças ao tiro disparado pelo português Arthur Garcia Soares, ao tomar as dores de homossexuais que estavam no mesmo bar.
“Esta história tem um lado bonito: um machão como ele morrer defendendo um grupo gay”, definiu o escritor Mario Prata, em O Estado de S. Paulo. Ele também estava no Bar Jerz naquela noite.
“Ele não tinha medo de tamanho, força, de ninguém nem de nada. Era um valentão mesmo. Mas era pessoa boníssima de coração. Um grande amigo dos seus amigos. Ele morreu por defender uma pessoa que nem conhecia. E ele já tinha se metido em várias outras confusões também em Santos”, afirma Cabralzinho, que foi colega, adversário e amigo de Almir.
Apesar do talento reconhecido, ele marcou a carreira com a palavra usada por Cabralzinho: confusões. Era incapaz de resistir a provocações e também as fazia com frequência e sem viso prévio. Título na capa da Folha de 7 de fevereiro de 1973 estampou: “Almir morre como viveu: violentamente”.
“Eu fui um marginal do futebol. Joguei como profissional durante 11 anos no Brasil, na Argentina e na Itália. Aqui no Brasil e na Argentina uma legenda me acompanhou: a de violento. Mas fiz muitos gols, construí jogadas para muitos artilheiros, ajudei alguns clubes a conquistar títulos: Vasco, Santos, Flamengo. Cheguei a ser chamado de Pelé branco quando o Corinthians me contratou cheio de esperanças, em 1960. Porém, só fui amado pelas torcidas dos clubes onde joguei. Para as torcidas adversárias e para uma parte da crônica esportiva, eu era apenas isso: um marginal”, definiu o próprio meia no seu livro “Eu e o Futebol”, obra seminal sobre os bastidores dos bastidores do esporte no país.
Nascido no Recife, Almir foi descoberto pelo Vasco em 1957. Venceu o Rio-São Paulo e o Carioca do ano seguinte. Em partida pela seleção brasileira contra o Uruguai, em 1959, provocou briga generalizada depois de receber uma entrada violenta. O confronto ficou paralisado por quase 20 minutos, mas o Brasil venceu por 3 a 1.
Foi a grande contratação do Corinthians em 1960. Seria a resposta do então presidente Vicente Matheus ao Santos que já era a principal força do futebol paulista. Almir recebeu o apelido de Pelé branco.
Matheus teria vendido um prédio do qual era dono para financiar a contratação do camisa 10, uma história até hoje não esclarecida. Deu tudo errado.
“Foi uma grande desilusão. A maior fofoca era que o Luizinho [um dos maiores ídolos da história corintiana] estaria com inveja do Almir e teria comandado um boicote contra ele, que ganhava muito e teria de correr. Mas ele desmente isso no seu livro, elogia o Luizinho e diz que o invejoso era o [goleiro] Gylmar”, descreve o jornalista Celso Unzelte, autor de livros sobre a história do Corinthians.
Em parte por causa da sua personalidade, por não se intimidar e pela sede de vingança, Almir foi preponderante no maior título do Santos, no momento em que, por ironia da história, o Pelé branco substituiu o Pelé original, que estava lesionado: a final do Mundial de 1963, contra o Milan.
Depois de perder na Itália, a equipe brasileira ganhou dois jogos no Maracanã para ficar com o troféu pela segunda vez. Duas finais em que Almir confessa não ter entrado apenas para jogar futebol, mas também para intimidar os adversários. Especialmente um deles.
“Aquela decisão foi um troço tão bacana que me fez sonhar muitas vezes com tudo o que aconteceu. Entrei em campo disposto a tudo e com muita raiva dos caras que, lá na Itália, tinham batido muito na gente. Procurei mostrar que não estava para brincadeira e logo dei um pau no Amarildo. Saí dividindo bolas como um louco. Os gringos reclamavam, mas eu não queria papo. Quanto maior era o gringo, mais eu batia”, relembrou.
Para os demais jogadores santistas que estiveram em campo naquelas duas partidas, os dois resultados não teriam acontecido sem Almir. Ele depois confessaria ter atuado sob efeito de estimulantes e o mesmo teria acontecido com outros alvinegros, fato nunca confirmado por nenhum outro jogador.
“O [técnico] Lula poderia ter colocado o Toninho Guerreiro no lugar do Pelé. Mas pelo fato de as partidas serem no Maracanã e pela característica aguerrida, colocou o Almir e acertou. Ele foi muito importante”, relembrou Pepe.
O meia-atacante entrou em campo com salvo-conduto de diretores do Santos, que lhe autorizaram a fazer o que fosse preciso para o time vencer. Acostumado a arrumar tumulto até em treinos por odiar perder mais do que qualquer coisa no mundo, ele não precisava ouvir mais nada.
Seu amor pela briga e o ódio das derrotas o fizeram criar, protagonizar e encerrar uma das maiores batalhas da história do futebol brasileiro. Com o Flamengo perdendo por 3 a 0 na final do Campeonato Carioca de 1966, Almir foi expulso pelo árbitro Airton Vieira de Moraes. Bastou um incentivo para não deixar as coisas acabarem daquele jeito pacífico.
“Volta lá, Almir. Acaba com essa palhaçada!”, foi o grito que ouviu de alguém das gerais do Maracanã.
Ele deu meia-volta e começou uma confusão histórica, em que distribuiu sopapos, correu atrás de adversários e fez a partida ser encerrada de forma precoce.
“Tinha de acabar daquele jeito. Logo no começo senti que não dava. O goleiro Valdomiro estava com medo, nem deveria ter entrado. O Bangu disparou e foi aumentando a vantagem. Naquele embalo, a gente ia levar de enfiada. Resolvi acabar com o carnaval. Quem estava na minha frente, apanhou. Dei pernada, pontapé, soco, cabeçada. Fora os desaforos que disse a todo mundo”, confessou.
O Bangu pediu a eliminação de Almir do futebol sob o argumento de que ele era “um cafajeste incorrigível”.
“Mais ou menos um mês depois da final de 1966 eu encontrei com o Almir. O Bangu estava no [aeroporto] Santos Dumont para viajar para o Nordeste e o encontramos na cafeteria. Ele estava meio cabisbaixo, meio envergonhado. Falou: ‘poxa, que palhaçada que eu fiz. Não podia ter feito nada daquilo.’ As pessoas não conseguiam ficar com raiva dele, querer vingança”, completa Cabralzinho, que atuava no Bangu.
Sete anos depois, gordo, ainda mais calvo e afastado do futebol, Almir estava em casa, ao lado da mulher Eunice, quando atendeu convite de dois amigos para ir ao Bar Jerz. Ele também não resistia a convites para uma cerveja. Não tinha na cabeça, possivelmente, a ideia de brigar com ninguém. Mas brigou pela última vez.