Nova Déli é praticamente uma aliada russa. Não condenou a invasão da Ucrânia nas duas oportunidades em que a ONU debateu o tema
IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP
A Índia, maior compradora de armas da Rússia, revelou pela primeira vez de forma objetiva o impacto da Guerra da Ucrânia sobre a capacidade da indústria de defesa do país de Vladimir Putin.
Diferentemente de fontes das estimativas ocidentais, que sempre misturam chutes calibrados com viés de propaganda, Nova Déli é praticamente uma aliada russa. Não condenou a invasão da Ucrânia nas duas oportunidades em que a ONU debateu o tema e amplificou o comércio com Moscou desde o início da guerra.
Isso torna o relatório entregue pela Força Aérea da Índia ao Congresso do país, em sessão na terça (21), ainda mais relevante. Segundo ele, os russos informaram não serem capazes de fazer entregas “de um grande projeto” e também de peças regulares de manutenção de aviões seus operados por Nova Déli.
Ato contínuo, a Força decidiu cortar em cerca de 30% os R$ 54 bilhões destinados para armamentos russos no ano fiscal de 2024, que começa em 1º de abril e vai até 31 de março do ano que vem, o maior corte da história recente.
Segundo a reportagem ouviu de dois analistas militares russos em anonimato e a imprensa indiana publicou, citando fontes na Defesa do país, o “grande projeto” é a entrega de cinco baterias completas do sistema antiaéreo S-400.
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Elas foram compradas em 2018 por US$ 5,4 bilhões (R$ 28,6 bilhões hoje). Três já foram entregues e estão operacionais nas fronteiras indianas, e as restantes seriam entregues este ano e em 2024. Seriam, diz a Aeronáutica local.
A reportagem buscou contato com a Rosoboronexport, o conglomerado estatal de exportação de armas russas, mas não obteve resposta.
“Eles [os russos] disseram por escrito que não conseguirão entregar”, afirmou um representante da Força Aérea cujo nome não foi revelado. “Por causa da Guerra da Ucrânia, tiramos esse componente [do orçamento]”, afirmou.
É uma má notícia e tanto para Moscou, que até aqui tem qualificado de mera difamação as reportagens na mídia ocidental acerca da dificuldade em colocar em campo alguns de seus principais armamentos na Ucrânia.
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A Índia, parceira comercial que aproveitou o fechamento do mercado europeu para os russos para elevar em 14 vezes a quantidade de petróleo que passou a comprar de Moscou, com o devido desconto, foi responsável por 23% das vendas militares da Rússia de 2016 a 2020.
Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, atrás de Nova Déli vieram Pequim (18%) e Argel (15%). Os indianos detiveram em 2021 o quinto maior orçamento militar do mundo, US$ 67 bilhões (R$ 353 bilhões hoje), segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres), atrás de EUA, China, Rússia e Reino Unido.
Como a Folha relatou no ano passado, a indústria armamentista americana é até aqui a principal beneficiária dos aumentos de gastos militares em países europeus preocupados com os riscos de a guerra se expandir.
A Rússia, atrás apenas dos EUA como maior vendedora de armas do mundo, por óbvio teve de direcionar esforços para a invasão que promoveu em 24 de fevereiro do ano passado. O caso indiano pode ser apenas o primeiro.
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Moscou já havia perdido um negócio, a entrega de 24 sofisticados caças Sukhoi Su-35S para o Egito. Cancelada em favor de uma provável aquisição de modelos modernizados do F-15 americano, a entrega foi redirecionada para o Irã.
O aliado russo no Oriente Médio tem estreitado sua cooperação militar com o governo Putin. Forneceu talvez 3.000 drones kamizakes Shahed-136, empregados em ataques à infraestrutura civil ucraniana a partir de outubro passado.
Agora, receberá seus primeiros caças modernos desde que comprou um lote de 41 F-14 americanos em 1976, antes da Revolução Islâmica de 1979, que rompeu laços com os EUA. Esse aviões foram extensivamente modernizados de forma quase artesanal, e são o centro da Força Aérea do país do golfo Pérsico -uma situação tão peculiar que eles foram parar no hit “Top Gun – Maverick” no ano passado.
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Os sistemas S-400 são um dos mais eficazes do mundo, podendo atingir alvos a 400 km de distância, e objeto de polêmicas. Estão em ação na Ucrânia, embora em números menores e dentro das fronteiras russas.
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Sua compra pela Turquia, um país membro da Otan (aliança militar do Ocidente) gerou tanta queixa dos EUA que Ancara foi cortada do programa de fabricação do caça de quinta geração americano F-35. A Arábia Saudita, próxima de Putin por questões petrolíferas, também ensaiou comprá-los.
Para a Índia, as dificuldades russas trazem problemas adicionais. Na Guerra Fria, o país buscou um não alinhamento, mas firmou forte parceria militar para receber equipamento soviético. Depois de 1991, com o fim do império comunista, passou a trabalhar em parceria com a Rússia –seus modelos produzidos também em casa do caça Sukhoi Su-30MKI, com aviônica ocidental, são considerados dos mais poderosos do mundo.
Mas ela depende dos russos para manter no ar boa parte de sua frota, dominada por 236 pesados bimotores Su-30MKI, mas que inclui velharias como 146 MiG-21 e 103 MiG-29 em estágios diversos de modernização. Nos últimos anos, Nova Déli tem tentado tirar alguns ovos da cesta, comprando material francês (tem 48 Mirage-2000 e 36 moderníssimos Rafale), mas o grosso da conta ainda vai para Moscou.
Em campo, contudo, até aqui os problemas russos têm sido vistos no maior emprego de mísseis do sistema antiaéreo S-300 modificados para função balística, atingindo alvos em solo com pouca precisão. Também foram empregados mísseis de defesa costeira do sistema Bastion como modelos terra-terra.
Ainda assim, mesmo com a escassez de chips essenciais para seus mísseis mais precisos, devido às sanções ocidentais, de tempos em tempos Putin ordena ataques amplos com esses modelos, incluindo o hipersônico Kinjal.
Os problemas atingem a todos, claro. Estimativa do União Europeia coloca o consumo atual de projeteis de artilharia em 20 mil por dia pelos russos e até 7.000 pelos ucranianos, mas Moscou tem a seu dispor vastas reservas dos tempos soviéticos.