Nos últimos dias de Joe Biden à frente da Casa Branca, a Ucrânia tenta uma nova ofensiva na região russa de Kursk, enquanto a Rússia anuncia um importante avanço em Donbass, conquistando uma cidade estratégica para a defesa ucraniana.
Ambos os lados do conflito iniciam 2025 buscando uma melhor posição diante da chegada de Donald Trump ao poder, que voltou a falar em terminar a guerra.
Na última sexta-feira (10), o presidente eleito dos Estados Unidos afirmou que os preparativos para o seu encontro com o presidente russo, Vladimir Putin, estão em andamento. “O presidente Putin quer se reunir. Ele até disse isso publicamente: precisamos acabar com essa guerra”, disse o republicano.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, por sua vez, saudou a prontidão de Donald Trump para o diálogo com Moscou, mas observou que ainda não há detalhes específicos sobre a organização de tal reunião. “Não são necessárias condições para isso. O que é necessário é um desejo mútuo e vontade política para conduzir o diálogo e resolver os problemas existentes por meio do diálogo”, disse Peskov.
Já a administração de Joe Biden, em seus últimos dias na presidência do país, articulou uma série de medidas de fim de mandato de apoio à Ucrânia e contenção da Rússia. Na quinta-feira (9), a Casa Branca anunciou o último pacote de ajuda democrata à Ucrânia, antes da posse de Trump, em 20 de janeiro, enviando um total de 500 milhões de dólares para o país.
“Não podemos desistir, é por isso que estou anunciando hoje outro pacote de autoridade de retirada presidencial avaliado em US$ 500 milhões. Inclui mísseis adicionais para a defesa aérea ucraniana, mais munição, mais munições ar-terra e outros equipamentos para apoiar os [caças] F-16s da Ucrânia”, disse o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, durante reunião com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.
O líder ucraniano chegou a dizer que o possível envio de tropas estrangeiras para a Ucrânia pode ser “uma das melhores ferramentas” para forçar a Rússia a buscar a paz.
Além disso, na sexta-feira (10), os EUA anunciaram um amplo pacote de sanções contra o setor energético russo, buscando minar a economia do país e atingir a capacidade de Moscou exportar petróleo. Washington afirmou que foi o maior pacote de sanções já aplicado contra o setor energético da Rússia.
Contexto no campo de batalha
As movimentações dos EUA acontecem em meio a novos desdobramentos no campo de batalha da guerra russo-ucraniana. De um lado, a Rússia segue o curso de sua ofensiva no leste ucraniano com grandes ataques e importantes avanços estratégicos em Donbass.
Por outro, Kiev esboçou uma tentativa de realizar uma nova ofensiva na região russa de Kursk, onde ainda mantém o controle sobre alguns assentamentos desde agosto do ano passado.
No último domingo, 5 de janeiro, foi relatado que as Forças Armadas da Ucrânia iniciaram uma nova ofensiva em Kursk, mas a investida para ampliar o avanço em território russo não surtiu nenhum resultado militar concreto. O Ministério da Defesa russo alegou que o ataque ucraniano sobre Kursk foi repelido.
Vale lembrar que, apesar de realizar uma intervenção inédita em território russo em agosto do ano passado, surpreendendo tanto o Kremlin quanto o Ocidente, a investida em Kursk sofreu uma contraofensiva por parte das tropas russas, chegando a perder cerca de 40% do território que havia controlado na área após o início da ofensiva em agosto.
Agora, Kiev ainda mantém sobre uma parte do território da região de Kursk, mas as perspectivas de avanço ficaram estacionadas. Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, afirmou que os esforços ucranianos de mudar a situação na última semana não trouxeram nenhum resultado militar concreto.
“Houve uma tentativa de avanço sobre um dos assentamentos na região, mas a Ucrânia não usou uma grande quantidade de soldados e equipamento pesado. Foi usada uma determinada quantidade, mas aparentemente foram apenas algumas centenas de pessoas. Então houve essa tentativa de avanço. A Ucrânia ampliou a ‘zona cinza’, houve a tentativa de atacar um povoado, que aparentemente fracassou”, disse.
De acordo com o analista, o que se pode concluir hoje sobre a tentativa ucraniana de atacar Kursk na última semana é que “ou isso foi um ataque fracassado”, ou “nem foi um ataque” de fato, levando em conta as análises militares que apontam que pode ter sido “uma tentativa de melhorar taticamente a posição das tropas ucranianas nas atuais áreas do front”.
“Ou foi alguma espécie de manobra de distração, como dizem alguns blogueiros militares russos […] Mas, qual manobra de distração poderia ter sido, ainda não é compreensível porque, de fato, não foi alcançado nada de concreto pelo exército da Ucrânia. E vimos que os russos estão mais bem preparados do que em agosto”, completa.
Em agosto do ano passado, a intervenção ucraniana na região russa de Kursk não abalou a estratégia russa de avançar em outra parte da linha de frente, em Donbass. Muito pelo contrário. Moscou aumentou ainda mais a pressão sobre o leste ucraniano, se aproveitando, inclusive, da transferência de recursos que Kiev teve que realizar para atacar Kursk.
Estudos apontam que a Rússia teve um avanço recorde sobre o território ucraniano em 2024, intensificando o ritmo da ofensiva justamente a partir de agosto, chegando a conquistar mais de 700 quilômetros quadrados apenas no mês de novembro. No total, durante todo o ano de 2024, a Rússia capturou mais de 3 mil quilômetros quadrados da Ucrânia, o que representa cerca de 0,5% de todo o território ucraniano.
Oleg Ignatov explica que os objetivos ucranianos na região são políticos e não possuem um sentido do ponto de vista militar.
“A base da estratégia ucraniana em Kursk é política. No início, em agosto, eles acreditavam que, se eles atacassem a região de Kursk e tomassem o território, isso poderia levar a mudanças na Rússia, que a Rússia poderia anunciar uma mobilização, que a posição do Putin poderia se enfraquecer, poderiam começar protestos no país, algo assim”, afirmou.
Agora, aponta o cientista político, eles veem que Trump quer começar negociações com a Rússia e acreditam que isso vai fortalecer a sua posição. “Mas mesmo entre os especialistas ocidentais, ninguém entende como isso seria possível. Então isso parece uma crença muito irracional de Zelensky, de que a incursão de Kursk é importante para a Ucrânia”, afirmou.
Ignatov destaca que, mesmo em um cenário hipotético de cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia, não há nenhuma garantia para Kiev de que a Rússia estaria disposta a negociar qualquer troca de território levando a intervenção de Kursk em conta.
“Mesmo se nós imaginarmos um hipotético cessar-fogo, por exemplo, e a Rússia prometeria um cessar-fogo no território da Ucrânia, mas pode dizer ‘nós não cessamos fogo no território da Rússia’. E assim, ela pode tranquilamente mover forças [para Kursk] no caso de um cessar-fogo na Ucrânia e simplesmente expulsar as tropas ucranianas de lá”, argumenta.
Avanços russos
A mesma dinâmica acontece agora nos primeiros dias de 2025: a Ucrânia volta a querer ganhar mais terreno no território russo e Moscou segue intensificando os avanços em outra parte do front, em Donbass. No dia seguinte às informações sobre a fracassada investida ucraniana em Kursk, a Rússia anunciou ter tomado o controle da cidade de Kurakhovo, considerada como um local estratégico para a defesa da Ucrânia.
De acordo o Ministério da Defesa russo, as Forças Armadas Ucranianas perderam mais de 12 mil pessoas durante os combates na região Kurakhovo, o que, segundo a pasta, representa 80% do pessoal das tropas ucranianas em combate no território.
O ministério russo enfatizou ainda que, ao longo de 10 anos, Kurakhovo foi transformada em uma poderosa área fortificada com uma rede desenvolvida de postos de tiro de longo alcance e comunicações subterrâneas.
Assim, a tomada da região é vista como um importante passo para Moscou capturar Pokrovsk, outro importante bastião de defesa ucraniana, e chegar a um dos seus principais objetivos militares na guerra: assumir o controle de toda a região de Donetsk, fortalecendo ao máximo a sua posição para possíveis negociações na chegada de Donald Trump à Casa Branca.
“Agora, se a região de Pokrovsk for tomada, isso vai dificultar o fornecimento da conexão restante com o rio Dniepr em Donbass, pode até cortar, então seria um centro logístico a menos. Isso é muito importante do ponto de vista militar”, aponta Oleg Ignatov.
“Considerando a atividade russa em Kharkov, isso representa uma ameaça às forças da Ucrânia que se encontram nas regiões de Slaviansk e Kramatorsk, as últimas grandes aglomerações em Donbass que não estão sob controle da Rússia”, conclui.
Edição: Leandro Melito