O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem buscado engajar discussões sobre o “combate à desinformação” por meio de acordos com outros países. A movimentação é observada por analistas políticos como uma tentativa de buscar respaldo internacional para avançar com a regulamentação das redes sociais no Brasil e possíveis ações de censura, tema que tem pouco consenso interno.
O mais recente acordo internacional que o Brasil fechou nesta área foi com o Chile, durante a Cúpula de Líderes do G20, no Rio de Janeiro. O memorando assinado pelos dois países prevê a troca de informações e diálogos que possam promover ferramentas de prevenção à desinformação. O acordo foi assinado pelo ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Paulo Pimenta, e a ministra da Secretaria-Geral do Chile, Camila Vallejo.
No documento, Brasil e Chile se comprometem a “desenvolver ações conjuntas destinadas a promover a integridade da informação, enfrentar o fenômeno da desinformação e contribuir para a redução da desigualdade digital”. Há um acordo similar com a França, além da Parceria Internacional para a Informação e a Democracia, que reúne 52 países, e a declaração final da Cúpula do G20 do Rio de Janeiro, ambas iniciativas apoiadas pelo Brasil com o objetivo de “combater a desinformação e o discurso de ódio”.
Na avaliação de Andre Marsiglia, advogado constitucionalista especialista em liberdade de expressão, tais acordos ainda não representam um risco, mas as ambições do governo com tratados desse tipo merecem atenção.
“A parceria é para troca de informações e debates, não afetando diretamente a liberdade de expressão. No entanto, parcerias do tipo sedimentam no debate uma visão governista sobre desinformação. Uma visão que, temos visto nos últimos anos, não é plural, nem técnica, nem jurídica, ao contrário, tem claras intenções de censurar politicamente adversários ideológicos e críticos. Com isso, ainda que de forma indireta, parcerias assim contribuem para reforçar o cenário de censura que temos atualmente no país”, disse à Gazeta do Povo.
O cientista político Adriano Cerqueira, professor do Ibmec e da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), também faz um alerta. “Eu vejo como muito perigoso quando o governo e agências internacionais tomam iniciativas nesse sentido, porque o perigo está em saber fazer medidas que não sejam nem autoritárias e nem de censura. Qualquer ação que visa, não importa a melhor das intenções, restringir a liberdade, inclusive de informações em nome de algum suposto bem comum, é perigoso, muito sério e que não deveria ser iniciativa de governo”, avalia.
O Brasil em busca da regulamentação das redes
Sob o mandato de Lula, o Brasil tem buscado avançar com a regulamentação das redes sociais. O petista tem adotado uma postura crítica em relação a essas plataformas, sobretudo à rede social X, que pertence ao bilionário Elon Musk. Além de defender que elas se responsabilizem pelo conteúdo publicado pelos seus usuários, Lula também mira nessas empresas para o recolhimento de impostos.
“Eu sou a favor de que a gente tenha uma regulação. Uma regulação urgente porque essas empresas não pagam imposto no Brasil. Essas empresas ganham bilhões de publicidade, essas empresas têm muito lucro com a disseminação do ódio nesse país e no mundo inteiro. Então, eu acho que nós temos que tomar uma decisão”, disse Lula em julho em entrevista para a TV Record.
Enquanto o tema pouco avançou no Congresso Nacional, quem tomou as rédeas da discussão foi o Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte está julgando a revisão do artigo 19 do Marco Civil da Internet e os votos lidos até agora, dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, consideram este artigo inconstitucional.
O dispositivo determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdos postados por usuários caso descumpram uma ordem judicial de remoção. Toffoli e Fux, porém, consideram que as redes sociais devem excluir imediatamente postagens quando houver notificação da pessoa ofendida diretamente à empresa.
O tribunal também tem indicado que criará novas regras para o controle do discurso nas redes, com o objetivo de obrigar que as plataformas removam proativamente alguns tipos de conteúdo que os próprios ministros deverão especificar nos próximos dias. Na avaliação de Adriano Cerqueira, há riscos quanto ao fato do STF ser o órgão que toca essas discussões.
“É uma forma perigosamente próxima de medidas autoritárias, de restrição de acesso à informação, de cancelamento de pessoas e perfis. Muitas vezes essas iniciativas têm supostas boas intenções, só que o efeito prático na verdade é muito ruim, inclusive para o próprio desenvolvimento do debate do conhecimento científico”, avalia o cientista político e professor do Ibmec.
Brasil tem buscado respaldo de outros países sobre o tema
A repercussão negativa sobre essa discussão é vista com preocupação pelo governo. Em busca dessa regulamentação, o Congresso produziu o Projeto de Lei das Fake News (PL 2630), que ficou conhecido como PL da Censura. Após passar pelo Senado com uma versão mais enxuta, a Câmara teve dificuldades de aprovar o projeto de lei desenvolvido e com regras já definidas. A pressão contrária, devido ao risco de censura, fez a Casa recuar pelo receio de derrota na votação.
Agora o governo tem trabalhado para tentar mudar a imagem negativa sobre a regulamentação. Para os analistas consultados pela reportagem, o diálogo com outros países sobre o tema tem o intuito de reduzir o apelo negativo dado à regulação das redes sociais. Já houve uma série de iniciativas neste sentido nos últimos meses. Além do Chile, o Brasil também fechou acordo com a França durante visita que o presidente Emmanuel Macron fez ao Brasil em março deste ano.
Entre diversos atos adotados, os dois países assinaram um acordo de cooperação de combate à desinformação. “O surgimento de novos riscos ligados à inteligência artificial generativa implica reforçar esta cooperação para preservar a integridade das nossas democracias e proteger os nossos cidadãos, notadamente as nossas crianças”, diz um dos memorandos referente à “defesa da ordem digital sustentável e igualitária”.
Um texto de Cooperação na Área de inteligência artificial também foi adotado entre os dois países. “O Brasil e a França trabalharão juntos em ações cujo objetivo será assegurar que todos tenham acesso adequado aos benefícios da inteligência artificial, inclusive por meio de serviços públicos eficazes que empreguem essa tecnologia. Da mesma forma, combaterão o uso inadequado da inteligência artificial que conduz à desinformação e aos discursos de ódio, ameaças tanto para as sociedades quanto para as democracias”, diz o acordo.
O Brasil também aderiu à Parceria Internacional para a Informação e a Democracia. “Ao promover marcos legais domésticos e padrões internacionais para o exercício da liberdade de expressão e o acesso a informações confiáveis, o Brasil busca combater a desinformação e o discurso de ódio, proteger o trabalho de jornalistas e profissionais de imprensa e promover o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, de opinião e de imprensa, essenciais à defesa da democracia”, disse o governo ao firmar sua adesão.
A iniciativa, lançada em 2019 em Nova York, conta com a participação de outros 51 países, entre eles Estados Unidos, França, Chile, Dinamarca e Espanha. Entre os pontos defendidos está “a ligação entre a liberdade de opinião e as verdades factuais”. Os membros ainda se comprometem a criar um “grupo internacional de especialistas em informação”.
O governo brasileiro também buscou promover o debate no G20, grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo e que o Brasil presidiu neste ano. Na declaração final proposta pelo Brasil, os países que compõem o grupo chegaram a concordar, com unanimidade, sobre um termo que citava a necessidade de regulamentar as plataformas sociais e de responsabilizá-las pelo conteúdo vinculado a elas.
“Enfatizamos a necessidade de transparência e responsabilidade das plataformas digitais, em linha com as políticas relevantes e os marcos legais aplicáveis, e trabalharemos com as plataformas e as partes interessadas pertinentes a esse respeito”, diz o documento. Os países pedem ainda que haja mais transparência sobre a funcionalidade das redes.
“A transparência, com as salvaguardas apropriadas, a explicabilidade sobre dados, algoritmos e moderação de conteúdo que respeitem os direitos de propriedade intelectual e a privacidade, e a proteção de dados podem ser fundamentais para a construção de ecossistemas de informação saudáveis”, pede o texto.
A Gazeta do Povo buscou o Palácio do Planalto para mais informações sobre possíveis acordos neste sentido com o Reino Unido, Canadá, Finlândia e Austrália, mas não obteve retorno. Durante entrevista que o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Paulo Pimenta, deu às margens do G20 para explicar o acordo fechado com o Chile, ele citou que o Brasil também tinha tratados sobre desinformação com essas quatro nações.