Aline e Marcos Bonvecchio, de 35 e 37 anos, moravam até fevereiro deste ano em uma barraca na praça da Sé, centro da capital paulista, com a filha Raquel, de 1 ano e 10 meses. Denise Rosana da Costa e Carlos Eder Pereira, 41 e 50, por conta de um roubo em que perderam todos os documentos e das dificuldades que a pandemia trouxe, passaram a viver em abrigos da prefeitura, enquanto buscavam incansavelmente por um emprego.
Francisca Alves Rodrigues, de 33 anos, tem dois filhos, um menino de 9 anos e uma bebê de 1 ano, e se mudou para São Paulo na esperança de conseguir algo melhor para a família que mora no nordeste. Isabel Cristina Santos, de 43 anos, é sergipana e veio à capital, após ser estuprada e violentada pelo ex-marido, em busca de uma vida melhor. Ela vivia em uma barraca na região da Consolação.
Essas e outras famílias têm algo em comum: se mudaram há pouco mais de um mês para as casas contêiner de 18m² da segunda unidade da Vila Reencontro, um programa social localizado realizado pela Prefeitura de São Paulo por meio da Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social).
As casas têm elementos para trazer a sensação de lar para as famílias, como números para identificar o contêiner e floreiras nas portas. Apesar de todo cuidado, é nítido que o lar é transitório, pois famílias, lado a lado, convivem dentro dessas casas, com até quatro pessoas, no mesmo ambiente, junto a cozinha, banheiro e quarto.
Dia a dia nos 18m²
“O modo de pensar mudou muito nesse último mês. Vim para São Paulo atrás de emprego, mas agora quero ficar aqui [na Vila Reencontro] por um ano e meio no máximo e voltar para o Nordeste com a minha família”, afirma Francisca, moradora da casa três, na vila.
A unidade localizada na região do Anhangabaú, no centro da cidade, tem 40 casas equipadas com cozinha, móveis e banheiro, além de nove escritórios administrativos. A primeira fica na região do Bom Retiro, com capacidade para 1.400 pessoas serem acolhidas.
A medida foi inspirada no modelo conhecido como Housing First (Moradia Primeiro), criado em países da Europa e nos Estados Unidos. O método tem como princípio garantir que a população em situação de rua tenha acesso imediato à moradia, para que, consequentemente, as outras necessidades básicas, como trabalho e acesso à saúde, sejam atendidas.
Os critérios de seleção, tendo em vista que o número de vagas da Vila não supre o número de pessoas em situação de rua, são: famílias em situação de rua ou acolhido, ter crianças que estão na primeira infância, idosos e pessoas que tenham algum vínculo com o território. Acima desses critérios, é necessário que as pessoas, independente da configuração, consigam exercer algum grau de autonomia.
“A metodologia é com foco prioritário na autonomia das pessoas e das famílias. Há todo um trabalho dentro da vila priorizando a recuperação da autonomia com garantia de dignidade”, disse o secretário de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Carlos Bezerra Junior, ao R7.
A maioria dos moradores da Vila viviam entre abrigos do CTA (Centro Temporário de Acolhimento) e hotéis antigos no centro de São Paulo, contratados pela prefeitura. Uma outra parcela morava nas ruas pelo centro de São Paulo.
“Senti medo quando viemos para a Vila Reencontro. Éramos mais seguros em um sistema em que sabíamos que não tinha tempo para sair. Além do medo de mudar e não conseguir ter autonomia de novo”, desabafa Denise Rosana sobre a experiência de morar no hotel Rivoli, no bairro da República, junto ao marido, Carlos, e mudar para o projeto da Prefeitura.
Carlos é motorista e conta que gosta mesmo de dirigir caminhões. Enquanto Denise é auxiliar de enfermagem e busca voltar para a área. O casal lida há anos com diversos problemas de saúde que dificultaram, principalmente para ele, encontrar um emprego. Apesar de todas essas questões, Denise diz que, além de frequentar mais médicos, ambos tentam se inserir nos projetos que a Vila oferece e “senti um avanço de quando estava no [hotel] Rivoli”.
De acordo com o secretário de direitos humanos, a administração e organização são feitas a partir de três coletivos realizados pelos próprios moradores: limpeza, plantio, colheita e distribuição da horta, e cozimento dos alimentos.
Além disso, segundo o secretário, há um trabalho sendo feito para capacitar essas pessoas em diversos âmbitos da vida, incluindo, psicossocial, no sentido de aprender a tomar decisões melhores e partilhar responsabilidades.
Erica Lacerda de Souza e Bruce Lee de Sousa dos Santos, de 32 e 28 anos, perderam os trabalhos e empreendimentos durante a pandemia e agora moram na Vila Reencontro junto ao filho Henrique. “A gente até vendeu o carro para tentar se estabilizar, mas precisamos ir para rua”, diz Erica.
Para Bruce, o maior desafio é se readaptar a nova realidade dos contêiners e aprender a conviver com tanta proximidade com diferentes pensamentos e realidades. “Queremos ficar aqui o mais breve possível”, afirma.
Futuro
“Estabilidade para não ter que recorrer a outros artifícios” e “Um futuro melhor para nossa filhotinha. Não quero que ela cresça em um abrigo, então a gente tem que se estabilizar para ela ter o cantinho dela” são as maneiras que Aline e Marcos definem o futuro que desejam para a própria família.
O casal se conheceu em Taubaté, interior do estado, enquanto Marcos estava se reabilitando do vício de álcool e drogas. Quando vieram para São Paulo moraram em uma barraca na região do Tietê e na praça da Sé, além de alguns abrigos e o hotel disponibilizado pela prefeitura. Durante o período em que moraram no centro, Aline relata que revezava com o marido para dormir, porque a segurança do centro da capital é muito baixa.
“Quando eu fiquei sabendo que ia vir para cá, eu falei ‘Nossa, vou para lá?’ e já deixei as coisas arrumadas uma semana antes de vir. Agora, é daqui para nossa casa própria”, conta Aline.
Atualmente, o casal cria a filha com o dinheiro da venda de balas, pães e café, oferecidos em um carrinho. Entretanto, Aline e Marcos têm enfrentando dificuldade para conseguir o alvará de funcionamento, por isso eles não podem sair de frente da Vila para não arriscar perder tudo.
Outros perfis de pessoas em situação de rua
A cidade de São Paulo possui cerca de 32 mil pessoas em situação de rua, de acordo com o Mapa da Desigualdade 2022, publicado em novembro, com uma média de 339 pessoas nos 96 distritos da capital. Na Vila Reencontro, até o momento, há 360 leitos.
Tradicionalmente, a maioria dessas pessoas são homens jovens e solteiros, o que não cumpre os pré-requisitos para morar na Vila Reencontro. Carlos Bezerra justifica que um senso feito após a pandemia mostrou que o número de famílias nas ruas aumentou cerca de 111% e, por esse motivo, a prioridade é essa. “Mas isso não significa que não estamos trabalhando com afinco em outras soluções”.
“Compreendemos essa população de maneira heterogênea e não homogênea. Indivíduos do sexo masculino, com ou sem uma dependência química, é apenas um recorte. São públicos distintos, com demandas distintas”, afirma o secretário. Para idosos e mulheres que sofreram algum tipo de violência, por exemplo, há outros planos de projetos específicos para os perfis.
Uma das promessas é diminuir os abrigos que hoje tem uma capacidade de mais de 600 pessoas para criar menos e mais administráveis, porque, segundo Bezerra, são inadmissíveis do ponto de vista burocrático.
De acordo com Bezerra, a próxima Vila deve ser no Pari, também no centro, e está na fase final de aprovação. Também há planos de expansão na primeira unidade e mais de 10 terrenos estão sendo avaliados para a instalação do projeto.
Contudo o maior problema que enfrentam hoje, para Carlos Bezerra Junior, é o preconceito. “Para além de todas as dificuldades burocráticas e orçamentárias, o preconceito das pessoas em geral com as pessoas em situação de rua é hoje um grande obstáculo que a gente enfrenta para a inserção dessas vidas”, finaliza.
*Estagiária do R7, sob supervisão de Guilherme Padim e Letícia Dauer