Nota do editor: Nigel Mulligan é professor assistente em Psicoterapia na Escola de Enfermagem, Psicoterapia e Saúde Comunitária da Universidade da Cidade de Dublin (Dublin City University), na Irlanda.
Todos nós passamos por perdas e luto. Imaginem, no entanto, não precisar se despedir de seus entes queridos, podermos recriá-los virtualmente para conversar e saber como se sentem.
Em 2020, no seu aniversário de 40 anos, Kim Kardashian ganhou de seu marido na época, Kanye West, um holograma de seu falecido pai, Robert Kardashian. Kim Kardashian teria reagido com incredulidade e alegria à aparição virtual do pai na sua festa de aniversário. A possibilidade de ver um ente querido morto há muito tempo, de quem se sente muita saudade, se mexer e falar de novo pode ser reconfortante para os que ficaram para trás.
Afinal de contas, “ressuscitar” um ente querido falecido pode parecer milagroso – e possivelmente um pouco assustador –, mas qual é o impacto disso na nossa saúde? Os “fantasmas digitais” de inteligência artificial (IA) são uma ajuda ou um obstáculo ao processo de luto?
Como psicoterapeuta que investiga a forma como as tecnologias de IA podem ser utilizadas para melhorar intervenções terapêuticas, estou intrigado com o advento dos ghostbots (robôs-fantasma). Mas também estou mais do que um pouco preocupado com os potenciais efeitos desta tecnologia na saúde mental de quem a usa, especialmente quem está de luto. Ressuscitar pessoas mortas como avatares tem o potencial de causar mais mal do que bem, perpetuando ainda mais confusão, estresse, depressão, paranoia e, em alguns casos, psicose.
Os recentes desenvolvimentos na inteligência artificial levaram à criação do ChatGPT e de outros chatbots que permitem aos usuários ter conversas sofisticadas, semelhantes às com seres humanos.
Utilizando tecnologia de deep fake, o software de IA pode criar uma representação virtual interativa de uma pessoa falecida usando o seu conteúdo digital, como fotografias, emails e vídeos.
Há poucos anos, estas criações eram apenas fantasia de ficção científica, mas atualmente são uma realidade.
Ajuda ou obstáculo?
Os fantasmas digitais podem ser um conforto para os enlutados, ajudando a restabelecer a ligação com os entes queridos perdidos. Podem dar ao usuário a oportunidade de dizer algumas coisas ou fazer perguntas que nunca teve oportunidade de fazer quando a pessoa falecida estava viva.
Mas a estranha semelhança dos ghostbots com um ente querido perdido pode não ser tão positiva como parece. Estudos sugerem que esses fantasmas digitais devem ser usados apenas como um ajuda temporária no luto para evitar uma dependência emocional potencialmente prejudicial.
Os fantasmas de IA podem ser prejudiciais para a saúde mental das pessoas ao interferirem com o processo de luto.
O luto leva tempo e existem muitas fases diferentes que podem ocorrer ao longo de muitos anos. Quando recentemente enlutadas, as pessoas que vivem o luto podem pensar frequentemente no seu ente querido falecido. É muito comum que uma pessoa em luto sonhe mais intensamente com o seu ente querido perdido.
O psicanalista Sigmund Freud preocupou-se com a forma como os seres humanos reagem à experiência da perda. Ele chamou a atenção para as potenciais dificuldades aos enlutados se houver negatividade em torno de uma morte.
Por exemplo, se uma pessoa tinha sentimentos ambivalentes em relação a alguém e essa pessoa morre, pode ficar com um sentimento de culpa. Ou se uma pessoa morreu em circunstâncias horríveis, como um assassinato, a pessoa em luto pode ter mais dificuldade em aceitar esse fato.
Freud referiu-se a este fenômeno como “melancolia”, mas também pode ser referido como “luto complicado”. Em alguns casos extremos, uma pessoa pode ter alucinações em que vê a pessoa morta e começa a acreditar que ela está viva. Os robôs-fantasma de IA, então, podem traumatizar ainda mais uma pessoa que esteja vivendo um luto complicado, e exacerbar os problemas associados, como as alucinações.
Horror do chatbot
Também há o risco de que esses robôs-fantasma digam coisas prejudiciais aos usuários, ou deem conselhos ruins a alguém que esteja de luto. Softwares generativos semelhantes, como o ChatGPT, já são amplamente criticados por dar informações erradas aos usuários.
Imagine se a tecnologia de IA se tornasse desonesta e começasse a fazer comentários inadequados ao usuário — uma situação vivida pelo jornalista Kevin Roose em 2023, quando um chatbot do Bing tentou fazer com que ele deixasse sua esposa.
Seria muito doloroso se um pai falecido fosse conjurado como um fantasma de IA por um filho ou filha para fazer comentários de que eles não eram amados, que não gostava deles ou não eram os favoritos do pai. Ou, em um cenário mais extremo, se o ghostbot sugerisse que o usuário se juntasse a ele na morte, ou que ele deveria matar ou prejudicar alguém.
Isso pode soar como um enredo de um filme de terror, mas não é algo tão distante assim. Em 2023, o Partido Trabalhista do Reino Unido propôs uma lei para impedir o treinamento de IA para incitar a violência.
Essa foi uma resposta à tentativa de assassinato da Rainha no início do ano por um homem que foi incentivado por sua namorada chatbot, com quem ele tinha um relacionamento “emocional e sexual”.
Atualmente, os criadores do ChatGPT reconhecem que o software comete erros e ainda não é totalmente confiável porque inventa informações. Quem sabe como os textos, emails ou vídeos de uma pessoa serão interpretados, e que conteúdo será gerado por essa tecnologia de IA?
De qualquer forma, parece que não importa o quanto essa tecnologia avance, haverá a necessidade de um controle considerável e de supervisão humana.
Esquecer é saudável
Essa tecnologia mais recente diz muito sobre nossa cultura digital de possibilidades infinitas e sem limites.
Dados podem ser armazenados na nuvem indefinidamente, tudo pode ser recuperado, e nada é realmente excluído ou destruído. O esquecimento é um elemento importante do luto saudável, mas, para esquecer, as pessoas precisam encontrar maneiras novas e significativas de se lembrar da pessoa falecida.
Aniversários desempenham um papel fundamental para ajudar as pessoas que estão de luto não apenas a se lembrarem dos entes queridos perdidos, mas também são oportunidades de representar a perda de novas maneiras. Rituais e símbolos podem marcar o fim de algo, e permitir que os seres humanos se lembrem adequadamente para esquecer adequadamente.
Este artigo poi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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