“Não quero sujar minhas mãos com linhagens outras. O tempo o espaço por elas tomados nos corpos de minhavó minhabisa minhatia foram demasiados. Suas mãos, as mãos delas, perdidas para si e plenamente de outras. Essa gente leva a honra pelo trabalho delas daquelas a quem vazaram o vinho da cabaça. E assim se dão grandes importâncias e são orgulhosas de seus antepassados, esses que de traficantes se fizeram governantes. E assim são orgulhosas das joias de suas coroas.”
O trecho é do livro Louças de Família, primeiro romance da escritora, poeta, tradutora e psicanalista Eliane Marques. Nascida na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, reside na capital gaúcha desde 2003. Também graduada em pedagogia, é mestra em direito público.
Louças de Família venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria “Melhor Romance de Estreia de 2023”. Também foi finalista do Prêmio Minuano de Literatura 2024 na categoria “Narrativa Longa”.
Neste mês, o livro ganhou o troféu Alcides Maya, da Academia Rio-Grandense de Letras (ARL). Durante a cerimônia, o presidente da entidade, Airton Ortiz, fez uma fala que causou indignação de alguns presentes: que a circunstância do Rio Grande do Sul ser tão pródigo no cenário literário se deveria “provavelmente por causa da imigração e da colaboração italiana e alemã”.
Daquele episódio, contou Eliane para o Brasil de Fato RS na ocasião, resultou “uma comoção social, e dessa comoção, ações de várias pessoas, pessoas brancas e pessoas negras escrevendo sobre o silêncio da branquitude que, de fato, faz parte do seu pacto narcísico. Ou, como dizem outros autores, não vivemos um contrato social, mas um contrato racial”.
Nesta conversa posterior, na redação do BdF RS, ela discorreu sobre a sua trajetória, futuros projetos, a luta antirracista, seu fazer literário e a importância da palavra.
Brasil de Fato RS: Como a psicanálise se relaciona com a literatura?
Eliane Marques: Sempre fui uma mulher que trabalhou com as palavras, tendo as palavras como meu objeto de ofício, como meu objeto de trabalho. Fiz formação em magistério, depois pedagogia, direito e mestrado em direito. Mas, nesse meio tempo, já fazia formação em psicanálise. E, para a psicanálise, as palavras são constitutivas dos sujeitos, das sujeitas, são constitutivas de uma realidade. Não existe uma realidade que não seja linguística para a psicanálise, ou, pelo menos, para certa dimensão da psicanálise.
Nunca sonhei ser escritora. Essa palavra não fazia parte do meu projeto de vida
Então, como escritora, tomo essa frase da psicanálise, e também constituo, num romance, o mundo pelas palavras de modo diverso ao mundo que se constitui num poema, por exemplo. Em um poema não quero contar história nenhuma. Quero descontar, quero interromper a comunicação, criar uma crise, dizer algo completamente inusitado. Já no romance, pretendo contar uma história, mas não de uma forma tão tradicional assim, que me separe completamente da minha relação mais disruptiva com a linguagem.
Como você se descobriu como escritora? Quem é Eliane Marques?
Nunca sonhei ser escritora. A palavra ‘escritora’ não fazia parte do meu projeto de vida. Nesse projeto estava: não quero ser como minhas antepassadas no sentido dessa relação de submissão a um senhor, a uma senhora, a essa relação muito serviçal em que um está em uma posição muito acima, e outro, especialmente outra, está em uma posição muito abaixo. O não-ser-como correspondia à minha meta de vida.
Eu já tinha uma relação com a leitura. Gostava de ler romances, poemas, contos, especialmente daquilo que chegava a mim vindo do Uruguai. Minha relação com a literatura começa com esse gosto pela produção literária produzida em língua espanhola. Tenho uma relação afetiva com essa língua. Chegada em Porto Alegre, aí é que fui descobrir a literatura de autoria negra e autores como Oliveira Silveira, Ronald Augusto; Conceição Evaristo, falando do Brasil; Jamaica Kincaid, Georgina Herrera, falando disso que nós chamamos de Améfrica, e outras autoras relevantes. E eu queria fazer isso que essas autoras fazem. Queria escrever, criar outro mundo na literatura. Minha vertente escritora nasce de uma relação de amor com outros escritores e outras escritoras.
Em psicanálise, costumamos dizer que existe sempre alguém que está à nossa frente nessa caminhada humana. Alguém que queres ser quando crescer, como nessa frase que utilizamos ordinariamente. E eram esses escritores, eram essas escritoras.
De algum modo, ninguém cresce se não romper com a família
Teu primeiro romance, Louças de Família, levou três anos para ficar pronto. Nele encontramos as relações de gênero, raça e classe. Fala-se do ´expaimeu`. Conta sobre a construção do romance.
Queria escrever um romance em que pudesse dizer aquilo que não consigo dizer nos poemas. Eu alimentava um blog chamado Nunca Fui Disso. Ali havia várias histórias curtas, por exemplo, de um avô, de uma avó, de uma personagem X. Mas não gostava daquele estilo. Não gostava daquilo muito tradicional. Gosto de coisas que rompam com algo. E, quando eu comecei a escrever Louças, em primeiro lugar, a minha dimensão mais poética em sentido estrito começou a predominar. Mas eu não queria essa dimensão tão poética, tão disruptiva. Tive que guardar um pouco dessa Eliane poeta para poder escrever um romance. O meu primeiro desafio foi esse.
Segundo desafio, trabalhar com algumas palavras ligadas às relações familiares que dissessem do pertencimento a uma família e da ideia de ruptura com essa família. Porque, de algum modo, ninguém cresce se não romper com a família. Não estou falando de brigar com a família, até pode ser, mas sair daquele lugar confortável ou daquele lugar de submissão.
Aí já começamos a entrar em relações de gênero, classe e também de raça. Porque, às vezes, em uma família, existe alguém que se considera menos negro, e alguém que se considera mais negro que outro. Por exemplo, o expaimeu relativamente a Cuandu, é esse personagem: um homem negro que, dentro da família, se considera menos negro e considera as mulheres mais negras. É um homem, com todo seu poderio em relação às mulheres, e se considera, digamos assim, uma classe superior. O nome expaimeu reúne tudo isso em uma única família e única, vamos chamar assim, raça social.
Louças tem também essa dimensão de que a crítica social não é feita apenas em relação à branquitude. Faz também em relação às pessoas negras no seio das famílias negras. Então, expaimeu, minhatia, minhavó não são apenas junções de palavras, mas nascem da relação com isso que as pessoas chamam atualmente de ancestralidade. Fui buscar ali na língua iorubá o modo em que se constroem essas palavras, em que minhatia aparece tudo junto, meupai aparece tudo junto, mas, nesse caso, há a partícula ex. Por que um ex? Porque, apesar da ruptura com a família, com esse discurso familiar, sempre estamos nele. Somos filhas de alguém, somos filhas desse pai.
Temos medo que nos considerem ‘Ah, lá vem a negra brava’, que é o que acontece muito comigo
A Cuandu leva o nome desse pai, por mais que ela quisesse se libertar, ele estava ali. Ela era filha dele. É ex, mas continua pai meu. Então, há nessa palavra isso de exterioridade e interioridade. De ruptura e continuidade.
Vou citar duas passagens do romance e queria que comentasses ambas. “Além de rancorosa, sou muito desconfiada. Sou da escola das ressentidas. Não preciso afirmar isso. Vocês já puderam ler. Mas preciso afirmar que não somos fortes, apenas não temos outra saída senão suportar, senão sobreviver”; e “Não sei escrever textos em que a raiva não desponte”.
Foi difícil para mim, como escritora, trazer esses sentimentos, esses afetos e desafetos, que, geralmente, precisam ficar escondidos, especialmente quando se trata de uma mulher negra. Porque temos medo que nos considerem “Ah, lá vem a negra brava”, que é o que acontece muito comigo.
Uma sociedade está me violentando desde que nasci e preciso ser boazinha?
E, nesse episódio (a premiação da Academia Rio-Grandense de Letras), caí de novo nesse lugar. Parece que é preciso estar brava para reagir a uma situação de violência. São essas imagens de controle de que fala (a pensadora antirracista) Winnie Bueno, a partir da (socióloga norte-americana) Patrícia Hill Collins. Então, ao mesmo tempo em que tive medo de trazer isso à frente, em razão de todas essas imagens de controle, eu queria fazer isso.
Cuandu já estava falando por si mesma. Ela queria afirmar, poder se dizer isso ou aquilo sem que a repressão partisse dela, ‘Não, tu não vai dizer, tu não diz nada disso nesse livro, tu fica calada’. Parece-me que isso é uma forma de libertação poder dizer não, sim, eu sou ressentida, eu sou brava, sou raivosa. Por que não posso ser? Existe uma sociedade que está me violentando o tempo inteiro, há 400 anos, ou desde que nasci e preciso ser boazinha? Preciso ser classe média? Cuandu sente e diz o que ela sente.
Acho também interessante, no que tange a linguagem do livro, é que a autora, no caso, Eliane Marques, não apaga. ‘Ah, não, mas eu acho que não era isso. Acho que era aquilo’ e permanecem o isso e o aquilo. Porque, no dia a dia, embora a gente diga, eu me equivoquei, me desculpe, o que falamos não é apagado. Fica no outro a marca de tudo aquilo que falamos. E por que, aqui no livro, eu deveria fazer de conta que não existem todos esses equívocos, essas construções, essas encruzilhadas? Então, a encruzilhada permanece ali. A marca do dito ficou no livro.
Aí é que está a construção linguística especial em Louças de família. Especial no sentido daquilo que estou buscando ou estava buscando.
Em que mais estás trabalhando atualmente?
Dois livros. Primeiro, um poemário que publico agora em março de 2025, pela editora Fósforo, chamado Silex. É um livro de poemas dividido em três partes.
Na primeira, que seria o tempo zero, a poeta funda um mundo. E essa fundação se dá a partir de mitologias anteriores à chegada de Cristóvão Colombo a isso que depois a intelectual Lélia González chamará de Améfrica. Estou me valendo de mitologias maias para criar esse tempo zero.
Estava lendo, mas fui buscar um documentário na TV e ouvi nele a fala de um antropólogo dizendo que há um mito entre os maias onde se conta que a serpente emplumada desceu ao subsolo. Eu achei fantástico. E a serpente trouxe desse subsolo os ossos das ancestrais. Ela subtraiu das formigas o milho branco e o milho amarelo, e dessa mistura de milhos, fez as gentes. Não há uma separação entre cultura e natureza. Pelo contrário, a natureza é que gera isso que se chama de humanidade. Foi uma serpente, com a ajuda das formigas, que construiu a humanidade a partir da mistura de milhos. Então, quando essa serpente sobe, ela sobe com os ossos das ancestrais. Estamos falando o tempo inteiro em ancestralidade, em antepassados, e a mitologia maia traz isso de uma forma tão bela. A primeira parte do livro é isso.
Na segunda parte, a poeta já fala de outras mitologias indígenas e não apenas maias. E, na terceira parte, ela se serve do encontro entre isso que se chama de africanidade com as mitologias que já se enunciavam aqui, que foram assento da Améfrica. Falará de Orixás, de Voduns, mas não no sentido de como as divindades são concebidas num terreiro. Pelo contrário, é o ritmo no poemário que cria o mito. Desloco totalmente, por exemplo, as ferramentas de um Orixá, as coloco em outro lugar, digo outra coisa.
Estou trabalhando em outro romance em que a personagem principal é uma gaúcha negra de pés descalços
A poeta se serve de uma linguagem restrita a um lugar que são os terreiros, uma linguagem que certamente vai para a música, mas que pouco está na literatura. Então o eu poético traz essa linguagem para criar um mundo que é sílex.
E já estou trabalhando, de forma muito apaixonada e intensa, em outro romance que talvez se chame Guanxuma, em que a personagem principal é uma gaúcha negra de pés descalços. Há autores que tematizaram o gaúcho a cavalo, outros o gaúcho a pé. Eu trabalho com a gaúcha negra de pés descalços. Parte do romance trata da destruição de um mundo utópico. E, a partir da destruição, se cria um mundo tal como o conhecemos hoje, já cheio das suas hierarquias, das suas desigualdades. O nome da personagem principal é Ela. Não pude dar um nome ainda a Ela e já escrevi umas 40 páginas. Ela ainda não quer se revelar a mim.
Essa personagem se relaciona com a água, o barro, as ervas e vai integrar um grupo de revoltosos que tentará criar outra sociedade no Rio Grande do Sul. Uma sociedade menos desigual em que participam pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+, pessoas vindas de fora.
Uma pesquisa da professora de literatura Regina Dalcastagnè aponta que o perfil do romancista brasileiro publicado por grandes editoras segue sendo na maioria homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo, como os protagonistas. Observa também a falta de mulheres e homens negros tanto na posição de autores como na de personagens…
O mercado editorial também compõe essa sociedade que se rege pelas regras do capitalismo, por uma competição. E o racismo também é uma forma de reservar lugares para um determinado grupo social, diminuindo a concorrência relativamente ao outro. Na medida em que o mercado está reservado para especialmente homens brancos, parte está fora e não concorre com esse grupo.
Mas entendo que, a partir de uns dois ou três anos, existem mudanças. Por exemplo, se formos pensar nos principais nomes da literatura hoje, temos o Itamar Vieira Júnior, que é um homem negro; Jeferson Tenório, que é um homem negro, a Conceição Evaristo, uma mulher negra, a Eliana Alves Cruz, que é uma mulher negra, a Luciane Aparecida, que recebeu o prêmio São Paulo. São autores negros e autoras negras que estão despontando no mercado editorial.
E por que será? Entendo que nós estamos contando a história do Brasil a partir de outra dimensão. Nós não falamos apenas de pessoas negras, como se diz: ‘Ah não, vocês estão falando de vocês’. Não, não é isso. Estamos falando da história do Brasil a partir de outro lugar, que não é o do conforto ou do privilégio. E as pessoas querem ler essa história do Brasil. E certamente, por se tratar de arte, não é uma história do Brasil como a história conta, mas é uma história estetizada, pois no campo da literatura. E isso está conquistando as pessoas. Nesse sentido, sim, somos ainda uma minoria no mercado editorial. Estamos brigando por lugares nesse mercado mas, ao mesmo tempo, estamos despontando como literatura de qualidade.
Sou da dinastia das eiras, das faxineiras, lavadeiras, cozinheiras, mas também das escrevedeiras, como a Maria Firmina dos Reis
Sim, e se formos ver, a primeira romancista brasileira é a Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra. Quem fundou a Academia Brasileira de Letras foi um homem negro, Machado de Assis. E temos aqui o Oliveira Silveira, um dos criadores do dia Dia da Consciência Negra.
Exatamente. Pensar que a Maria Firmina dos Reis, em 1859, publica Úrsula sob o pseudônimo de uma maranhense, porque temia não ser aceita, visto que uma mulher, e uma mulher negra, naquela época não poderia assinar a autoria de um livro… Mas, ao mesmo tempo, traz para o centro da sua narrativa dois personagens principais que são Túlio e a preta Susana. É a primeira vez que alguém faz uma narrativa do sequestro da população depois dita da África. Essa preta, Susana, faz essa narrativa lá em 1859, dizendo que tinha uma família, uma casa, tinha filhos e foi sequestrada por esses europeus que foram lá, colocaram as suas botas na África e retiraram de lá parte da sua riqueza.
É fantástico que sejamos, que eu seja, da dinastia da Maria Firmina dos Reis. Sou da dinastia das eiras, das faxineiras, lavadeiras, cozinheiras, mas também somos a dinastia das escrevedeiras, como a Maria Firmina dos Reis.
Agora vamos para o episódio da Academia Rio-Grandense de Letras, e vem à mente o livro O Pacto da Branquitude, da escritora Cida Bento. O que resultou daquele episódio?
Daquele episódio resulta uma comoção social, e dessa comoção, ações de várias pessoas, pessoas brancas e pessoas negras escrevendo sobre o silêncio da branquitude que, de fato, faz parte do seu pacto narcísico. Ou, como dizem outros autores, não vivemos um contrato social, mas um contrato racial. Nesse contrato, as pessoas brancas estão conformando a parte da sociedade que recebe bens, e as pessoas negras conformam a outra parte que, quando muito, recebe sobras desses bens. Esse episódio traz isso, a mobilização de parcela da branquitude para responder a isso que ela mesma criou.
Entendo que o racismo é estrutural, que tem relação com o capitalismo etc. Naquele momento, eu não podia me esquivar de falar sob a justificativa da impotência da minha fala diante do racismo estrutural. Se minha fala não pode mover ninguém, porque o racismo é integrante do capitalismo, então não vou falar, vou engolir calada e sentada como a branquitude faz?
Algo ao meu alcance eu fiz. E as pessoas que ouviram e que leram estão fazendo aquilo que está ao alcance delas, escrevendo, e grupos estão se reunindo para pensar a branquitude. O que vamos fazer com isso que criamos, com esse monstro que criamos? O efeito é esse: uma mobilização social que já vinha se processando.
América nunca foi América, ela sempre foi Améfrica
Citaste pensadoras como Lélia Gonzáles e Winnie Bueno. Temos Sueli Carneiro e tantas outras. Juntamente com o resgate da literatura vamos ter também dessas pensadoras?
Com certeza. Como psicanalista, estou forjando, junto com outras psicanalistas, o conceito de psicanálise amefricana que surge a partir dos textos da Lélia e disso que ela vai chamar de amefricanidade. América nunca foi América, ela sempre foi Améfrica. Contudo, esse ´f´ que diz da África foi reprimido de modo que não aparecesse. Aparece a América do Américo mas não aparece a Améfrica da África. Para pensar esses sujeitos que habitam essa virtualidade linguística, estamos nos servindo da Lélia González. Mas, como ela mesma diz, estamos também nos servindo de quê? Dos Itans iorubás, das histórias de origem bantu ou indígena, para criar outra psicanálise que não se assente apenas nos mitos gregos.
Porque inclusive esses mitos da amefricanidade, no seu tronco iorubá ou no seu tronco bantu, são bem anteriores aos mitos gregos. É essa psicanálise forjada a partir de Lélia que pode pensar uma resposta para esse mal estar na amefricanidade, que é um mal estar branco, mas também negro e indígena. Quem está bem nessa sociedade racista? Será que a branquitude está bem com o monstro que criou? É preciso reinventar a partir disso que esses povos trazem, pensar esse mal estar. E não apenas a partir de textos que nem nos pensaram, que nem nos tinham em conta.
Estamos no Rio Grande do Sul, o estado que tem o maior número de terreiros e o maior número de quilombos urbanos. Como fazer uma luta antirracista potente nesse estado?
Há uma predominância de terreiros, há uma predominância de população quilombola. Mas há uma predominância também da branquitude. Somos o segundo estado mais branco do Brasil, apenas depois de Santa Catarina. Pensando naquilo que está mais na ponta e que nos é mais acessível, vamos trazer as políticas públicas. Por exemplo, as ações afirmativas que criaram espaços negros dentro da universidade, dentro do serviço público. Isso foi um grande avanço.
Dentro da universidade essas pessoas negras começaram a pensar a partir de outras literaturas, de outras bibliografias, a trazer outros temas fora daqueles comuns que geralmente a branquitude pensa. Essas políticas públicas, cujo exemplo são as ações afirmativas, me parecem fundamentais para que possamos mover um pouco essa sociedade racista do seu lugar, esse lugar de racista. Mas é preciso também que a população branca, pelo menos a população branca que quer uma sociedade mais democrática, se mobilize, que pense soluções, que efetue renúncias. É preciso que a população branca renuncie a alguma coisa. Renuncie a matar, por exemplo, renuncie a ocupar todos os lugares.
É preciso que a branquitude se repense e não espere que as pessoas negras digam o que deve fazer
Nesse sentido, temos ações como o letramento racial em que, por exemplo, a Defensoria do Estado tem trabalhado internamente nisso. A educação racial seria um caminho a ser trilhado…
Sim, como eu disse para alguém que me escreveu no Instagram dizendo que nenhuma revolução ou luta é ganha se fazendo apelo aos opressores, no sentido de que não adianta ficarmos convocando a branquitude para fazer algo, porque essa branquitude jamais vai se movimentar nos seus lugares. Não, essa branquitude já está se movimentando nos seus lugares porque, se não tivessem sido aprovadas no Congresso, que é de maioria branca, embora partissem do movimento negro, as ações afirmativas não estariam aí.
Nesse sistema todo, é isso que a gente diz em psicanálise: sempre existe um furo por meio do qual podemos fazer alguma coisa. Mas é preciso que a branquitude se repense, que pense aquilo que pode fazer e não esperar que as pessoas negras digam o que a branquitude deve fazer.
O papel da literatura negra, indígena, LGBTQIA+ é fazer um buraco grande nesse sistema
Qual o papel da literatura nessa desconstrução, nessa luta contra o racismo, contra a misoginia, contra o patriarcado?
Existem várias literaturas. Há uma literatura que vai afirmar esses lugares do patriarcado, do sexismo, do racismo, como durante muito tempo afirmou, excluindo as pessoas negras da possibilidade de escrever ou publicar, porque são dois passos. Eu posso escrever, mas não tenho condições de publicar. Eu posso escrever e publicar, mas o meu livro não circula.
Então, o papel da literatura de autoria negra, indígena, LGBTQIA+ é fazer um buraco grande nesse sistema, um buraco por onde entrem outras letras. E como psicanalista digo que esse buraco se faz por meio de palavras que criem uma crise no discurso estabelecido.
Uma mensagem final…
Cada um de nós pode ocupar um papel na luta contra o racismo. Os papéis não serão os mesmos, as nossas bases teóricas não serão as mesmas, as bases filosóficas não serão as mesmas. Mas cada um pode ocupar o seu lugar. Como, por exemplo, no período de escravização, havia aqueles que formavam os quilombos. Havia aqueles que se suicidavam, havia aquelas que envenenavam a comida do senhor e da senhora. Quer dizer, existem várias formas de lutar e todas as formas de luta são válidas.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno