Fichtelberg é uma montanha localizada entre a Alemanha e a República Tcheca. Nos dois lados da fronteira a atividade principal é o turismo, baseado nos esportes de inverno. No último domingo (29), milhares de turistas invadiram a região. Um percurso de 15 minutos de carro entre estações de esqui levava mais de duas horas. Estacionamentos ficaram lotados.
A correria ganhou as redes sociais. Os teleféricos e as máquinas que fabricam neve não estavam funcionando. Não era um defeito, mas a condição climática. O lindo dia de sol e neve na montanha, com temperatura amena de 5°C, contrastava com o frio no vale, abaixo de zero, uma inversão.
A neve não perdura nessas situações. E, em termos históricos, a paisagem branca está se tornando cada vez menos frequente na Europa.
Análise de dados de 123 países do hemisfério Norte realizada pela ONG Climate Central, divulgada neste mês, mostra que 44 ganharam sete dias ou mais de inverno acima de 0°C nos últimos dez anos (2014-2023). Na Alemanha foram 18; na Lituânia, o pior caso, 23 dias. Temperatura negativa é condição básica para formação de neve, junto com uma certa quantidade de umidade.
Das regiões estudadas, o continente europeu foi o que, na média, mais ganhou dias quentes entre dezembro e fevereiro na última década. O apelo do breve fim de semana de neve em Fichtelberg, portanto, tem razões estatísticas.
Das tantas consequências do aquecimento global, provocado pela queima de combustíveis fósseis e emissões de metano, uma das mais óbvias é o derretimento de geleiras e a menor quantidade de neve no topo das montanhas. Bem menos evidente, porém, é a amplitude das consequências provocadas pela falta de gelo na natureza.
Neve nas montanhas é uma forma de acúmulo de água. Se a temperatura não está abaixo de zero, como não estava em Fichtelberg, a neve que cai logo derrete; ou, ainda no céu, vira chuva antes de se tornar neve. Cada grau Celsius a mais no termômetro acrescenta 7% a mais de umidade no ar; quanto mais umidade, mais água pode se transformar em chuva no lugar de neve.
Chover não é um problema, mas a água que cai fora da hora no inverno faz falta nas estações mais quentes. É o degelo que alimenta rios e nascentes na primavera e no verão. As secas severas na Califórnia têm diversos fatores relacionados às mudanças no clima, mas sempre começam com invernos de pouca neve nas montanhas. O desequilíbrio gera consequências.
O inverno controla, por exemplo, as populações de mosquito —houve aumento de casos de dengue na Europa em 2023. Também dele depende a incidência de pólen. Determinados tipos de frutas e castanhas precisam do período para sua completa formação.
Se os ciclos naturais não falam tão alto, outros, mais terrenos, se impõem: estações de esqui estão fechando na Europa, alterando profundamente a economia de diversas regiões no continente.
Os exemplos se sucedem neste inverno europeu. No Parque Nacional de Berchtesgaden, quase na fronteira da Alemanha com a Áustria, a estação de Jennerbahn encara seu primeiro fim de ano sem esqui. Jenner, o pico mais alto, tem 1.874 metros, bem acima dos 1.215 metros que atraíram a multidão mais ao norte.
Os Alpes perderam 34% das nevascas de 1920 a 2020, de acordo com estudo da Eurac Research. A perda se intensifica a partir dos anos 1980 e é maior nas altitudes abaixo dos 2.000 metros, mostra a pesquisa.
Jennerbahn era uma estação pequena. A economia local não dava conta do negócio, que acabou sendo transferido para um grupo de investidores. Foram alocados 57 milhões de euros (R$ 366 milhões) em novos teleféricos em 2019. A ideia era atrair mais público. Faltou combinar com a neve, que parou de cair, e a pandemia.
A partir de agora, não há mais esqui, apenas trilhas, que não dependem do gelo nem da estação.
A história se repete na França. Dois resorts com décadas de história capitularam antes do inverno: Alpe du Grand Serre e Grand Puy. Na Espanha, Sierra Guadarrama perdeu seu Clube Alpino, que existia desde os anos 1940. Segundo levantamento da Universidade de Grenoble já são 180 fechamentos desde os anos 1980.
Alpe du Grand Serre também investiu em um plano de renovação da infraestrutura. Os 55 km de pista, com 85 anos de história, deveriam ganhar instalações que permitissem seu uso durante o ano todo. Não houve fôlego.
O conselho local decidiu pelo fechamento semanas antes da temporada começar. Era a segunda maior estação do Vale do Isère, região que abriga um Club Med muito frequentado por brasileiros.
Ainda que soe esnobe ou exótico para turistas de um país tropical, esqui e outras atividades de inverno viveram um período de popularização nos últimos 30 anos. Resorts se adaptaram em tamanho e estrutura para receber grandes contingentes.
O processo, segundo analistas, deve se reverter agora. Além das pistas mais baixas e acessíveis estarem fechando, os custos de manutenção, como os de máquinas de neve artificial, sobem junto com os termômetros.
Os preços escalam também com a altitude das estações. Locais mais exclusivos começam a ser explorados pelo segmento de luxo, como já ocorre nos EUA. Reportagem do Financial Times mostra a diferença de maneira simples: um passe de um dia de esqui em Aspen, no Colorado, pode chegar a US$ 179 (R$ 1.105), contra US$ 79 (R$ 488) na França.
Chalés em condomínios negociados por cifras de seis dígitos não batem muito com a origem mais popular do esporte na Europa, de prefeituras que contratam funcionários temporários no inverno, pequenas lojas de equipamentos, restaurantes e bares sazonais. A falta de neve também significa um choque cultural em boa parte do continente.
Em outubro, a Organização Meteorológica Mundial e a FIS (Federação Internacional de Esqui e Snowboard) fecharam uma parceria para “aumentar a conscientização sobre o futuro sombrio que os esportes de inverno e o turismo enfrentam devido às mudanças climáticas”.
“Férias de inverno e eventos esportivos cancelados são, literalmente, a ponta do iceberg da mudança climática”, afirmou a secretária-geral da OMM, Celeste Saulo.
“O recuo das geleiras, a redução da cobertura de neve e gelo e o descongelamento do permafrost estão causando um grande impacto nos ecossistemas, nas comunidades e nas economias das montanhas. As repercussões serão cada vez mais sérias.”