A estratégia de produzir e disseminar fake news no embate político não é novidade no Brasil.
Muito antes do surgimento da internet, agentes do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão da última ditadura brasileira (1964-1985), inventaram leitores para tentar desmoralizar integrantes do clero progressista, através da seção de cartas de jornais de Salvador.
Em 1980 e 1981, período da abertura política, quando a censura prévia foi suspensa, os arapongas do SNI de Salvador criaram a Operação Igreja, produzindo 57 cartas de pessoas que se diziam indignadas e rebatiam matérias com declarações de padres e bispos de esquerda.
A estratégia seguia uma das diretrizes do órgão: combater os opositores do regime com contrainformação.
O material da Operação Igreja foi localizado pelo historiador Grimaldo Zachariadhes, doutor em história, política e bens culturais pelo CPDOC-FGV, nos arquivos da ditadura relacionados à Bahia e a Sergipe. Ele participou do projeto Memórias Reveladas, que levantou os documentos secretos do regime militar, atualmente no Arquivo Nacional.
“Essa documentação preservada nos dá uma dimensão de que a confecção de documentos falsos não é algo da era pós-internet, das chamadas fake news, mas algo intrínseco da política nacional”, comentou.
A operação começou em maio de 1980 e seguiu no contexto das repercussões pela expulsão do país do padre italiano Vito Miracapillo —que se recusou a celebrar missa comemorativa à Independência do Brasil. Foi motivada também por um episódio curioso: o trabalho colegial sobre a vida de Leonid Brejnev, então presidente da União Soviética.
Nos relatórios os agentes se gabam dos bons resultados da ação: “Esta Agência, através de um trabalho modesto e econômico, porém de relativa eficácia, confeccionou dezenas de cartas descaracterizadas, que foram enviadas às redações dos jornais […] no intuito de tentar neutralizar, enfraquecer e desacreditar a ‘ala progressista’ das Igrejas Católica e Protestante”.
Foram anexados ao material os originais datilografados e recortes das cartas publicadas pelos jornais A Tarde, Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia e Correio da Bahia.
A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dirigida na época pela chamada ala progressista da Igreja, foi um dos alvos dos ataques.
Uma carta assinada com o pseudônimo Áurea Trindade critica uma suposta falta de diálogo da Igreja com o governo, pois a instituição seria controlada pelos bispos “revolucionários e marxistas”. Foi publicada no jornal A Tarde, em 13 de dezembro de 1980.
O SNI também monitorava o ensino religioso, e entrou no foco do órgão o colégio jesuíta Antônio Vieira, de Salvador, fundado há 113 anos, que abria as portas para eventos da oposição.
Um informe de 4 de agosto de 1980 diz que o colégio passou para alunos do 2º grau trabalho sobre a “personalidade de Leonid Brejnev”, líder da União Soviética entre 1964 e 1982, “obrigando aos alunos a procurarem contatos com elementos esquerdistas da área”.
Logo depois, a agência cria dois personagens que enviam cartas de conteúdos semelhantes aos jornais.
Em uma delas, um homem simulando ser pai de um aluno reclama do trabalho escolar e diz que seu filho está recebendo “a todo instante telefonemas de comunistas notórios e não notórios, oferecendo seus préstimos para a confecção da pesquisa”.
O professor Sérgio Silveira, diretor-geral do colégio, ficou surpreso com a existência do monitoramento do SNI, mas não do trabalho sobre Brejnev. Explicou que, historicamente, o tipo de ensino da ordem jesuíta, voltado a formar cidadãos críticos e conscientes, pode desagradar a regimes autoritários.
Disse ter certeza de que “este professor, ao passar uma pesquisa como essa, estava incitando seus alunos a buscarem conhecimento sobre história, o que essa história impacta na sua vida e como sua vida se imbrica na formação da sociedade”. Acrescentou que todo regime político “que atentar contra a vida” terá no colégio um adversário.
As posturas progressistas do colégio causam polêmica até em tempos de democracia. Em maio deste ano, a mãe de um estudante reclamou pelas redes sociais do fato de o colégio ter adotado nas aulas de religião o livro “Pequeno Manual Antirracista”, de Djamila Ribeiro, escritora e colunista da Folha. Em 2019, outro pai de aluno criticou a instituição por adotar o livro de Lázaro Ramos “Na Minha Pele”.
A reportagem procurou a CNBB por telefone e email para saber se seus atuais dirigentes gostariam de comentar a Operação Igreja, mas não obteve retorno até a conclusão desta reportagem.