A falta de transparência e de rastreabilidade à destinação e aplicação de recursos bilionários das emendas parlamentares nos últimos quatro anos está colocando políticos da direita à esquerda no centro das investigações da Polícia Federal. A reportagem apurou que as suspeitas de ilegalidades podem envolver membros de até 13 partidos em 17 estados brasileiros. Se os policiais conseguirem comprovar as evidências iniciais, pode ocorrer uma grande devassa jurídica no Congresso.
A PF apura diferentes irregularidades e esquemas de desvio de recursos de emendas de Orçamento. As investigações se concentram em levantar provas sobre como ocorreram a operacionalização das irregularidades, as formas e metodologias de desvio de dinheiro, e quem são os possíveis grupos fraudadores e os beneficiários. Tudo deve ser concentrado em um mesmo inquérito que tramita agora no Supremo Tribunal Federal (STF).
De antemão, a PF já encontrou indícios que podem levar a deputados, senadores, operadores que atuavam como lobistas em Brasília, servidores públicos nos mais diferentes estados e municípios que eram peças-chave para fraudar e direcionar licitações superfaturando-as, e até terceiros que abriam empresas e forneciam contas laranjas para escoar os recursos – que podem chegar às cifras bilionárias em esquemas ocorridos nos últimos quatro anos.
Casos suspeitos de desvio entraram no radar das investigações antes de inquérito do STF
Antes mesmo do inquérito instaurado pela PF a pedido de Flávio Dino, operações deflagradas em diferentes estados do Brasil começaram a levantar suspeitas sobre os desvio dos recursos bilionários de emendas parlamentares.
Entre as apurações mais avançadas está a que revelou, no fim do ano passado, um lobby de operadores em Brasília, possivelmente evolvendo políticos e suas assessorias, que resultavam na liberação de verbas para municípios e estados parceiros. Tudo era previamente acordado com superfaturamento e direcionamento de obras e serviços que iam desde pavimentações, grandes edificações até serviços de dedetização.
Um dos esquemas criminosos revelados pela Polícia Federal recebeu o nome de operação Overclean. Segundo a PF, ela envolvia fraudes licitatórias e desvio de recursos públicos com foco em contratos superfaturados e lavagem de dinheiro que podem chegar a 17 estados. A PF ainda investiga se outros casos, em outros estados e com envios de recursos suspeitos de fraudes, operavam da mesma forma ou se tinham modo de atuação diferentes.
Segundo a PF, neste caso específico da Overclean a organização criminosa sediada na Bahia movimentou aproximadamente R$ 1,4 bilhão em emendas parlamentares em quatro anos, dos quais R$ 825 milhões correspondem a contratos com órgãos públicos somente em 2024. A operação resultou na prisão de 16 pessoas. Todas já estão em liberdade por decisão do Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1) em Brasília.
Neste caso em específico, o esquema criminoso operava da seguinte forma: a fraude era estruturada a partir de contratos manipulados com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), mas também envolvia outras instituições. A principal ação do grupo consistia no direcionamento de recursos de emendas parlamentares e convênios para licitações vencidas de forma fraudulenta por empresas e pessoas ligadas a administrações municipais e possíveis parceiros políticos em Brasília.
O STF quer saber se havia a participação, direta ou indireta, de deputados e senadores, bem como suas assessorias. Segundo a PF, esses contratos eram frequentemente superfaturados, e os desvios de recursos eram facilitados por servidores públicos cooptados pela organização criminosa. A Receita Federal detectou várias irregularidades, incluindo movimentações financeiras incompatíveis com a origem dos recursos, omissão de receitas e uso de intermediários – com empesas fantasmas e laranjas – para ocultar a origem dos valores ilícitos.
A estrutura da organização contava com operadores centrais e regionais, como o empresário José Marcos de Moura, conhecido na Bahia como Rei do Lixo, que após supostamente fazer a ponte da liberação das verbas na capital federal, intermediava a cooptação de servidores públicos para viabilizar o direcionamento de contratos fraudulentos. As investigações também indicaram que o grupo chegava a pagar propina para que concorrentes deixassem de concorrer a um certame.
A defesa de José Marcos de Moura não respondeu aos pedidos de entrevista feitos pela reportagem. Moura chegou a ser preso, mas foi liberado por determinação do TRF1 ainda em dezembro. As investigações indicaram que para garantir a aprovação dos contratos, as empresas envolvidas inflacionavam os preços dos serviços, cobrando valores muito acima dos praticados no mercado. A conivência de servidores locais auxiliava para os tais atos fraudulentos, inclusive com falsas medições de obras que justificavam a liberação de recursos.
As propinas eram pagas por meio de empresas de fachada e por meio de outras estratégias para ocultar a origem dos valores ilícitos. Além disso, a lavagem de dinheiro ocorria de forma sofisticada, com o uso de empresas de fachada controladas por laranjas e com alto volume de transações em espécie, facilitando a movimentação dos recursos em dinheiro vivo.
Nesta investigação, antes da abertura do inquérito solicitado por Dino, surgiram os nomes de dois parlamentares que não são considerados investigados por ora. O deputado federal Elmar Nascimento (União-BA) e de uma assessora do senador Davi Alcolumbre (União-AP). O deputado, o senador e a assessora parlamentar não responderam à reportagem.
No dia da operação da PF, em dezembro, um primo de Elmar, Francisco Manoel do Nascimento Neto foi preso na Bahia suspeito de participar do esquema de desvio de recursos em emendas parlamentares. Quando os policiais chegaram para o cumprimento do mandado de prisão, ele tentou jogar pela janela de casa uma mala com R$ 200 mil.
Se confirmados os atos criminosos, os suspeitos podem responder por corrupção ativa e passiva, peculato, fraude em licitações e contratos, e lavagem de dinheiro. As penas podem somar mais de 50 anos de prisão, além de multas.
Emendas suspeitas de serem usadas para compra de votos nas eleições municipais
Em outros casos em apuração e que também foram submetidos ao STF, a PF indica que suspeitos podem ter usado recursos desviados de emendas parlamentares para a compra de votos nas eleições municipais de 2024. Uma operação deflagrada pela PF na reta final do ano passado por suspeita de irregularidades no processo eleitoral indicou possível utilização irregular de recursos de emendas no estado do Ceará.
O nome do líder do governo Lula na Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT), apareceu em conversas em um aplicativo de troca de mensagens de um então candidato a prefeito na cidade de Choró, no interior do estado com um empresário. As mensagens teriam indicado a destinação de uma emenda de Guimarães e desvio de recursos. O deputado não é formalmente investigado pela PF. Uma porcentagem de 12% da emenda de R$ 1,5 milhão à saúde seria enviada para um possível caixa dois de campanha, o que resultaria em cerca de R$ 180 mil.
Carlos Alberto Queiroz Pereira, popularmente conhecido como Bebeto (PSB), que era o candidato a prefeito de Choró, foi eleito, mas não tomou posse no último dia 1º. Sua prisão foi decretada em dezembro e ele é considerado foragido da Justiça. A Gazeta do Povo não conseguiu contato com a defesa de Bebeto.
A PF também rastreou o nome de outro deputado federal: Luiz Rodrigues Mano Júnior, o Júnior Mano (PSB-CE). Em uma das conversas Bebeto fala com um assessor do deputado Júnior Mano sobre a liberação da emenda e a destinação dos 12% para um possível desvio.
Para a PF, o deputado teria envolvimento e aparece como um articulador de compra de votos nas eleições de 2024 em pelo menos 51 cidades do Ceará e desvio de recursos de emendas parlamentares. A Gazeta do Povo pediu uma entrevista com o deputado, mas sua assessoria não retornou ao contato. Ele tem negado as acusações, diz que que seu nome vem sendo utilizado de forma indevida e vai provar sua inocência na Justiça.
Por ter foro privilegiado, o caso está agora no STF, mas foi submetido ao ministro Gilmar Mendes que ainda não indicou se vai remetê-lo a Dino que concentra todos os inquéritos sob suspeitas de desvios de emendas. Os advogados do deputado pediram, ainda durante a tramitação do processo no judiciário do Ceará, sigilo ao processo. O deputado era do PL, mas foi expulso pelo partido após apoiar o candidato do PT, Evandro Leitão, que se elegeu à prefeitura de Fortaleza. Na sequência Júnio Mano, se filiou ao PSB.
CGU mapeia ONGs que recebem emendas parlamentares
Além da PF, a Controladoria-Geral da União (CGU) também tenta rastrear possíveis repasses indevidos ou desvio de recursos públicos que saem do orçamento da União em verbas bilionárias de emedas. A CGU selecionou, de forma aleatória, 26 das 600 Organizações Não Governamentais (ONGs) que receberam recursos de emendas parlamentares de 2020 a 2024. Um relatório apontou que das ONGs analisadas, metade, ou seja, 13, não fornece transparência adequada ou não divulga informações sobre aplicação dos recursos. O repasse de recursos a essas ONGs está suspenso.
Outras nove apresentam informações de forma incompleta. Apenas quatro promovem a transparência das informações de forma adequada, considerando a acessibilidade, clareza, detalhamento e completude de acordo com a CGU.
Fontes ligadas às investigações indicam que ainda há um universo a ser desvendado sobre a destinação, a utilização e possíveis desvios dos recursos de emendas parlamentares, que pode incluir as mais diferentes formas de desvio em lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
TCU faz varredura em 21 processos sobre possíveis irregularidades e desvios de recursos
Somadas às apurações em curso, o Tribunal de Contas da União (TCU) também apura possíveis desvios de recursos de emendas parlamentares que juntas somam mais de R$ 10 bilhões. São 21 apurações que tratam de emendas individuais, de comissão e as RP-9 de 2022 que ficaram conhecidas como “orçamento secreto” e não são mais utilizadas.
Um dos alvos das auditorias foi a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), que ficou conhecida no meio político como a ‘central do Centrão’. Somente em um dos casos o TCU identificou 29 pregões eletrônicos do fim de 2020 para pavimentação urbana que somou R$ 533,4 milhões em contratos.
A Corte de Contas identificou o uso indevido do sistema de registro de preços (SRP) na contratação de obras, assim como outras irregularidades com relação à execução de contratos que teriam resultado, segundo o TCU, a sobrepreços de até 70%. Como são contratos de 2020, a companhia disse que “desde então adotou uma série de medidas voltadas ao aperfeiçoamento de processos de contratação” como o parcelamento dos objetos de contratação; padronização de editais, termos de referência e contratos; constituição de comissão permanente para monitoramento de ações; treinamento de equipes de fiscalização entre outras ações.
Tudo que vem sendo encontrado nas auditorias do TCU têm sido destinados ao ministro Flávio Dino, no STF. O TCU alerta que, comumente as verbas destinadas às emendas são liberadas na reta final de cada ano, momento em que já não há tempo suficiente para realizar o processo licitatório necessário à formalização dos contratos e ao empenho das despesas. Para contornar essa limitação, a organização recorria ao uso da adesão à ata de registro de preços, possibilitando a execução do orçamento ainda dentro do ano fiscal, o que aumentava o risco de práticas irregulares.
Parlamentares denunciam falta de transparência e rastreabilidade
No despacho em que deu origem ao inquérito na Polícia Federal, Flávio Dino menciona o pedido feito por quatro parlamentares que afirmavam não ver transparência e mecanismos de rastreabilidade na liberação das emendas. O inquérito determina a apuração de possíveis práticas criminosas na liberação e destinação destas verbas a partir de suspeitas levantadas pelo senador Cleitinho Azevedo (Republicanos-MG), e pelos deputados federais Adriana Ventura (Novo-SP), José Rocha (União-BA) e Glauber Braga (PSOL-RJ).
Em 17 de dezembro de 2024, ao utilizar a tribuna, o senador Cleitinho Azevedo chegou a sugerir uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar as emendas parlamentares. Trecho de sua fala é usada por Dino no pedido de instauração do inquérito. “O que a gente tem que fazer com essas emendas que são pagas é trazer transparência para a população. Não é deixar esses lobistas desviando dinheiro público, ganhando dinheiro fácil em cima de emenda parlamentar. Que seja investigado. Que a PF investigue tudo”, disse o deputado na tribuna.
Em 23 de dezembro Flávio Dino suspendeu o pagamento de quase 5,5 mil emendas de comissão. Juntas elas somavam R$ 4,2 bilhões do orçamento da União. No dia 31 Dino voltou atrás e liberou parte das emendas, R$ 370 milhões à saúde.
Para o bloqueio das verbas, o ministro atendeu a um questionamento feito pelo PSOL referente ao ofício autorizando a execução das emendas, enviado pela Câmara dos Deputados ao poder Executivo. O ministro é relator de todas as ações em tramitação no STF que tratam de emendas parlamentares. No começo de dezembro o Plenário da Corte confirmou decisão do ministro que liberou o pagamento das emendas mediante a adoção de critérios de transparência para o empenho dos recursos no orçamento da União.
Desde o mês passado Flávio Dino tem afirmado que surgiram fatos novos que foram questionados pelos autores das ações em tramitação no STF e por entidades que participam dos processos como terceiras interessadas.
“Por meio de manifestação apresentada ao STF, as partes apontaram irregularidades na tramitação das emendas nas comissões permanentes e denunciaram suspeita de ‘apadrinhamento’ de emendas de comissão por líderes partidários. As partes também apontaram manipulação do regimento da Casa com a suspensão das atividades de todas as comissões permanentes até o dia 20 dezembro, véspera do recesso parlamentar”, elenca o ministro.
A medida, segundo os autores das ações, seria para “inviabilizar a rediscussão de alterações feitas nas emendas com o apoio de 17 líderes partidários”, descreve em comunicação oficial, o STF. Além da investigar os fatos, a PF deverá ouvir parlamentares. Segundo Flávio Dino, as emendas parlamentares deste ano só poderão ser executadas pelo governo federal após cumpridas todas as determinações do STF, em especial sobre as correções no Portal da Transparência e na plataforma Transferegov.br.