Mandou chamar o vigário:
– Pronto! – o vigário chegou.
– Às ordens, Sua Excelência!
Bispo lhe perguntou:
– Então, que cachorro foi
Que o reverendo enterrou?
– Foi um cachorro importante, animal de inteligência:
ele, antes de morrer,
deixou a Vossa Excelência
Dois contos de réis em ouro.
Se eu errei, tenha paciência
– Não errou não, meu vigário,
você é um bom pastor.
Desculpe eu incomodá-lo,
a culpa é do portador!
Um cachorro como esse,
se vê que é merecedor!
O enterro do cachorro
Fragmento de O dinheiro,
de Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918).
“Não sei, só sei que foi assim”. Foi assim que cresci, foi assim que me formei, foi assim que vivi. Nasci no sertão do Cariri, no Ceará, mas fui criado em São Paulo, ouvindo minha avó e meu pai contarem os causos tradicionais e quase sempre cômicos que ouviram ou viveram por lá. A vastidão seca e austera dessa região, seus contornos agrestes e seu povo resiliente sempre moldaram minha percepção de mundo. Ao ler o Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, fui inevitavelmente transportado para um espaço muito próximo ao meu, ainda que ficcional: Taperoá, na Paraíba. Ali, os cenários e os personagens pareciam falar diretamente às minhas memórias, às vivências de quem conhece as nuances do sertão nordestino, seus dilemas e suas belezas.
O termo “auto”, que dá título à peça, remete a uma tradição literária medieval que encontrou sua expressão mais marcante em Portugal, com autores como Gil Vicente. Os autos, de caráter religioso ou moralizante, eram encenações teatrais que buscavam entreter e instruir, combinando elementos cômicos e dramáticos. Em Suassuna, essa tradição é revitalizada e adaptada à realidade nordestina, compondo um texto que é simultaneamente local e universal, popular e erudito, cômico e trágico.
Logo de início, o Auto da Compadecida se apresenta como uma obra que transcende fácil categorização. A narrativa, centrada nas figuras de João Grilo e Chicó, é um caleidoscópio de referências culturais, históricas e religiosas. João Grilo, o anti-herói arquetípico, é a personificação da astúcia sertaneja, enquanto Chicó, seu companheiro de aventuras, encarna o imaginário fabuloso e a oralidade tão própria ao povo nordestino. Ambos, através de suas artimanhas e desventuras, questionam instituições e hierarquias sociais, expondo as contradições de uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade e pela hipocrisia.
O auto foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste, como exemplificado pela epígrafe deste texto, que reflete a rica tradição literária e cultural da região, principalmente da literatura de cordel, uma expressão autêntica e profundamente enraizada na cultura nordestina. O cordel, com suas rimas e narrativas envolventes, sempre foi uma forma de resistência e preservação da história e das crenças populares do povo nordestino. Ela surge das vozes anônimas, das experiências cotidianas e das mitologias locais, muitas vezes abordando temas como o folclore, as lendas, os desafios da vida no sertão e as figuras heróicas que se tornam parte do imaginário coletivo.
A trama, ambientada em Taperoá, entrelaça o cotidiano do sertão com temas universais como a justiça, a fé e a moralidade. No cerne da narrativa está o julgamento final, no qual figuras como o Diabo, Manuel (Jesus Cristo) e Nossa Senhora da Compadecida desempenham papéis cruciais. Esse julgamento é uma síntese brilhante do sincretismo religioso brasileiro, mesclando elementos do catolicismo tradicional com a religiosidade popular. Nossa Senhora, por exemplo, é retratada como a intercessora máxima, dotada de uma empatia profunda pelo sofrimento humano, enquanto o Diabo encarna não apenas o mal metafísico, mas também as injustiças concretas do mundo terreno.
Um dos aspectos mais notáveis da peça é seu uso magistral da linguagem. Suassuna consegue recriar a oralidade nordestina com uma precisão e um lirismo que tornam o texto profundamente autêntico. As expressões idiomáticas, os ditos populares e o humor peculiar do sertão são explorados de maneira a dar à obra uma musicalidade própria, que é ao mesmo tempo cômica e poética. Esse uso da linguagem é também um ato de resistência cultural, uma afirmação da riqueza e da singularidade da tradição nordestina em um contexto histórico marcado pela marginalização dessa região no imaginário nacional.
Outro elemento essencial é o humor, que permeia toda a narrativa e serve como um meio de subversão e crítica. O riso em Suassuna não é apenas um fim em si mesmo; é uma ferramenta poderosa para desvelar as estruturas de poder e questionar as normas sociais. As cenas envolvendo figuras como o padeiro, a mulher adúltera e o padre ganancioso são exemplos claros de como o humor pode ser utilizado para expor a hipocrisia e a corrupção, sem perder de vista a complexidade e a humanidade dos personagens.
No entanto, o Auto da Compadecida é muito mais do que uma sátira social. É também uma obra profundamente espiritual, que aborda questões existenciais de maneira acessível e tocante. A justaposição entre o cômico e o trágico reflete a própria experiência humana, especialmente no contexto do sertão, onde a luta pela sobrevivência é acompanhada por uma rica vida espiritual e cultural. Essa dualidade é exemplificada na figura de João Grilo, que, apesar de todas as suas falhas e artimanhas, revela uma profunda compreensão da condição humana e um desejo genuíno de justiça e redenção.
Finalmente, não se pode falar de o Auto da Compadecida sem destacar seu impacto cultural. Desde sua estreia em 1955, a obra tem sido adaptada e reinterpretada em diversos formatos, incluindo cinema e televisão, sempre com grande sucesso. Essa capacidade de ressoar com públicos tão diversos é um testemunho de sua força artística e de sua relevância atemporal.
Assim, ao revisitar o auto, não apenas reconheci os traços do sertão de Taperoá, mas também enxerguei, refletidos na obra de Suassuna, os dilemas, as esperanças e a grandeza de um povo que, como João Grilo, encontra na astúcia e na fé as ferramentas para enfrentar as adversidades da vida. É uma obra que, mais do que nunca, fala à alma do Brasil.
Entre o Sagrado e o Profano: O Auto da Compadecida no cinema
Quando O Auto da Compadecida foi lançado em 2000, ele não apenas adaptou a obra-prima teatral de Ariano Suassuna; o filme redefiniu os limites do cinema brasileiro ao mesclar a comédia popular com um profundo subtexto cultural e espiritual. Sob a direção de Guel Arraes, a narrativa costurou o rico universo da literatura de cordel com um vigor cinematográfico raro, valorizando a oralidade nordestina, a esperteza dos personagens e o sincretismo religioso que define boa parte do Brasil profundo. Agora, quase um quarto de século depois, a chegada de O Auto da Compadecida 2 apresenta novos desafios e celebra antigas conquistas, refletindo não apenas mudanças nos personagens, mas também no próprio cinema nacional.
A adaptação de 2000 transformou um material originalmente teatral e radiofônico em um dos mais marcantes sucessos do audiovisual brasileiro. O que foi crucial nesse processo não foi apenas a fidelidade à linguagem e ao humor de Suassuna, mas também a habilidade de transportar sua essência para um formato mais dinâmico e visualmente rico. A câmera de Guel Arraes explorou o sertão não como um espaço meramente árido e desolado, mas como um palco vibrante de emoções humanas e conflitos universais. A plasticidade dos cenários e a leveza da montagem ampliaram o alcance da obra, permitindo que João Grilo e Chicó transcendessem suas origens regionais para se tornarem arquétipos da malandragem, da coragem e da sobrevivência em um mundo de desigualdades.
O primeiro filme equilibrou o sagrado e o profano com uma elegância incomum. A presença de Fernanda Montenegro como a Compadecida não apenas ancorava o filme no imaginário católico, mas conferia gravidade e beleza ao julgamento final, em contraste com as peripécias hilárias de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). O resultado foi uma obra que conseguia ser simultaneamente crítica e devocional, regional e universal, cômica e comovente.
Por outro lado, O Auto da Compadecida 2 surge em um momento em que o cinema brasileiro enfrenta tanto desafios orçamentários quanto pressões por inovação narrativa. A sequência, dirigida novamente por Guel Arraes e co-assinada por Flávia Lacerda, preserva a essência humorística e o carisma dos protagonistas, mas se revela menos ousada em suas ambições. Se o primeiro filme foi uma celebração da criatividade e do virtuosismo narrativo, o longa de 2024 prefere revisitar fórmulas consagradas, às vezes sem o frescor necessário para reinventá-las.
A escolha de explorar os mesmos arquétipos em uma nova disputa – agora eleitoral – funciona como uma alegoria contemporânea, mas carece da profundidade que tornou o original atemporal. Ao colocar João Grilo no centro de uma disputa entre poderosos locais, o filme aborda questões relevantes sobre manipulação política e ambição, mas muitas dessas reflexões acabam diluídas em uma trama que prioriza o humor fácil em detrimento da crítica social mais contundente.
Mesmo assim, há méritos que não podem ser ignorados. A utilização de animações para ilustrar os “causos” de Chicó é uma inovação que respeita o espírito narrativo original ao mesmo tempo em que explora novas linguagens visuais. Além disso, a introdução de novos personagens, como Antônio do Amor (Luiz Miranda) e a nova Compadecida (Taís Araújo), traz vitalidade ao elenco e prova que há espaço para reinvenções dentro desse universo.
A substituição de Fernanda Montenegro por Taís Araújo no papel da Compadecida sintetiza o maior desafio da sequência: como se apropriar de um legado icônico sem descaracterizá-lo? Araújo entrega uma interpretação que equilibra suavidade e carisma, mas inevitavelmente carrega o peso de suceder uma das maiores atrizes da história do cinema. Sua performance, entretanto, sinaliza uma tentativa de modernização do filme, aproximando a Compadecida de uma figura mais acessível e menos hierática.
Já Nachtergaele e Selton Mello permanecem como o coração da história. A química da dupla é tão marcante que ofusca eventuais problemas narrativos. João Grilo ainda é o malandro irresistível, enquanto Chicó continua o contador de histórias cheio de medos e contradições. Contudo, é notável que o roteiro de 2024, em sua tentativa de reproduzir os acertos de 2000, acabe restringindo a evolução dos personagens. A sensação de repetição é inevitável, especialmente para quem tem o primeiro filme vivo na memória.
Talvez o maior mérito da nova adaptação resida em sua capacidade de reaproximar o público do universo de Suassuna, mesmo que o faça de maneira menos inspirada do que poderia. O filme é um convite à nostalgia, mas não se arrisca o suficiente para ampliar as fronteiras narrativas do original. Em um momento em que o cinema nacional luta por espaço em meio a produções estrangeiras de alto orçamento, a falta de ousadia da sequência é compreensível, mas não deixa de ser frustrante.
Por outro lado, a obra reafirma o poder duradouro dos personagens de Suassuna e o impacto cultural de suas histórias. Mesmo quando não é plenamente inventivo, O Auto da Compadecida 2 prova que o Brasil ainda sabe rir de si mesmo – e, às vezes, essa capacidade é tudo o que precisamos para seguir em frente.
* Bruno Fabricio Alcebino da Silva é bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Ciências Econômicas e Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca