Nesta quinta-feira (9), às vésperas da posse de Nicolás Maduro como presidente da Venezuela para um mandato de seis anos, o Brasil de Fato lança um documentário sobre as comunas venezuelanas.
O filme, que foi produzido durante o período eleitoral de julho de 2024, ouviu e visitou diversas comunas, em distintas regiões da Venezuela, para entender como essa organização se fortaleceu ao longo do tempo e qual o tamanho da influência das comunas na política venezuelana.
“Comuna o Nada – A organização popular que sustenta a revolução bolivariana”, será lançado às 19h desta quinta-feira no Youtube do Brasil de Fato.
As comunas foram idealizadas pelo então presidente venezuelano Hugo Chávez, anos antes de sua morte por problemas de saúde, decorrentes de um tratamento de câncer, em 2013. O que o histórico comandante esperava era organizar a sociedade, econômica e politicamente, de maneira local e autônoma. Sua inspiração eram as comunas chinesas implantadas por Mao Tsé Tung, na China, no “Grande Salto Adiante” do começo dos anos 1960.
A iniciativa começou a ser implementada em 2010, após a promulgação da Lei Orgânica de Comunas. Os desafios para que a ideia se tornasse realidade foram os mais diversos, mas um momento chave para que a medida fosse de fato concretizada foi a reunião do Conselho de Ministros de 2012.
Registrada para a posteridade como “Golpe de Timón” (ou em uma tradução possível, momento de virada), a reunião abordou diversos assuntos em cerca de três horas de transmissão ao vivo. Mas, por cerca de 15 minutos, Chavéz cobrou cada um de seus ministros, entre eles o então ministro de Relações Exteriores, Nicolás Maduro, para que as comunas fossem implantadas em todo o país.
O grande sonho de Chávez se concretizou e hoje mais de 90% do território venezuelano tem organizações sociais formalizadas como comunas ou em processo de formalização. Oficialmente, existem 3.662 comunas na Venezuela e outras 1.578 já se consideram comunas, mas ainda carecem do aval estatal para atuar como tal.
Pessoas próximas ao presidente Hugo Chávez afirmam que, constantemente, o mandatário mandava recados aos seus ministros, por meio de pequenos bilhetes, ou mesmo longas conversas, onde determinava os rumos da nação. O ex-vice-presidente da Venezuela entre 2010 e 2012, Elias Jaua, conta que recebeu diversos desses bilhetes e em uma das conversas, pediu que ele transmitisse seus ideais sobre as comunas venezuelanas:
“Uma vez, em uma conversa com o Comandante Chávez, ele me disse: ‘se algum dia lhe perguntarem o que Chávez quer com a comuna, diga-lhes que é prefigurar o socialismo no pequeno, a construção do socialismo baseado numa transformação cultural nas esferas económica, política, territorial, social, espiritual e cultural’”.
As comunas são diversas. Estão instaladas em centros urbanos, em áreas rurais e também em comunidades indígenas. Segundo Felipe Vanegas, porta-voz da Comuna Socialista Che Guevara, no estado de Mérida, no noroeste venezuelano, “mais que uma ideia” a comuna “é uma síntese construída por Chávez. É ver a realidade”, explica.
“Acho que essa foi a melhor coisa que o comandante fez. Ele foi capaz de sintetizar o que somos como povo venezuelano e penso que a expressão máxima disso é o movimento comunitário, é construir algo onde todos nos encaixamos, onde todos nos sintamos parte desse exercício, afirma Banegas.
O sistema de comunas foi precedido pelos conselhos comunais, criados em 2006, inicialmente para debater os rumos do chavismo na Venezuela e, ao longo do tempo, se consolidaram como um modelo de democracia participativa e representação popular. Hoje, os conselhos são espaços deliberativos das comunas, responsáveis pelo seu funcionamento, além de decisões econômicas e sociais.
“É onde as pessoas se conectam”, explica Jenifer Lamus, porta voz da Comuna El Maizal, que fica no estado de Lara. “A comuna é aquela que está todos os dias com as pessoas, é com o que as pessoas se identificam”, completa.
El Maizal, inclusive, é considerada a maior comuna da Venezuela, uma ocupação de terra de camponeses que foi estabelecida como tal por Hugo Chávez, em 5 de março de 2009. Para além de moradia, o território é focado na produção. Os mais de 10 mil habitantes do espaço são responsáveis pela produção de milho, café, leguminosas, hortaliças, farinha de milho, leite, além do processamento de queijo e carne de bovinos e suínos.
A comuna conseguiu estruturar sua produção a ponto de, durante a crise econômica da última década, ser uma das responsáveis pelo abastecimento interno da Venezuela de farinha de milho, um dos produtos mais utilizados na culinária local. O insumo era distribuído à população por meio das Clap’s (Comitês Locais de Abastecimento e Produção).
Ainda em vigor, a Clap distribui cestas básicas em todo o território nacional e durante a crise (entre os anos de 2015 e 2018), deu subsídios para que a população venezuelana ajudasse a combater a especulação do preço dos alimentos.
Economia comunal
O desenvolvimento econômico e autossustentável das comunas, que era um dos focos do presidente Hugo Chávez, foi levado a cabo pelos governos que o sucederam. Angel Prado, que era porta voz da Comuna El Maizal e se tornou ministro das Comunas, explica que “há um desenho, políticas que são implementadas, e o governo alocou recursos suficientes para apoiar projetos em termos de serviços públicos, comunicação e principalmente na produção” das comunas.
“O objetivo é que a comuna gere processos produtivos que lhe permitam ser autossustentável e que não dependam do Estado venezuelano, mas sim de seu próprio processo, que sejam dirigidas desde a mesma comunidade, em cada bairro, que todas essas células sejam auto governos bem fortalecidos e com controle territorial”, completa Prado.
Na Comuna Socialista Che Guevara, nos andes de Mérida, a produção também é o foco principal. A região historicamente habitada por produtores de café mantém sua tradição produtiva do grão. Agora, a comuna onde habitam mais de 1.500 famílias divide suas atenções com a produção de cacau.
“Essa região tem uma característica muito peculiar, isso não acontece em todo o país. A razão é que somos, em sua maioria, pequenos agricultores, ou seja, somos dos territórios onde há mais agricultura familiar”, explica Felipe Vanegas.
Como forma de organização, seus habitantes criaram cooperativas de trabalho, que processam cacau e café, e também são responsáveis pela venda e distribuição dos produtos. Segundo Vanegas, ainda “com muitos problemas de levar essa produção ao mercado e distribuição, mas com um grande avanço que é a construção de indústrias que melhoram a qualidade de vida das pessoas”.
“Não é tão fácil como gostaríamos. Embora seja o nosso governo e nós sempre o defendamos, não é tão fácil romper com os processos burocráticos e fazer o Estado comprar nossos produtos. É uma luta que a gente vem travando nesses últimos dois anos, que é a luta pelas compras públicas do Estado. O Estado venezuelano é o maior consumidor de alimentos do país”, completa Vanegas.
Organização popular contra a crise
A crise econômica que se abateu na Venezuela após o bloqueio econômico dos Estados Unidos foi extremamente dramática para a população. Entre 2015 e 2019, com sua economia dependente da venda de petróleo, o país precisou buscar alternativas para angariar recursos e importar produtos de necessidade básica.
Para além das movimentações do governo de Nicolás Maduro para cessar a fome, as comunas passaram a se auto organizar. A farinha que era produzida em El Maizal servia de moeda de troca com o café produzido na Comuna Che Guevara, por exemplo.
“Isso foi essencial para suportar a crise. Aqui éramos um centro de distribuição de alimentos, porque trazíamos comida de outros lugares para as pessoas, procurávamos daqui, dali e com isso não sofremos tanto nos anos mais difíceis da crise revolucionária”, explica Vanegas.
Outra solução criada pelas comunas foram as moedas locais. Em Mérida, com a inflação em 1.300%, criou-se o Cafeto, como forma de proteger o valor de troca de tudo que era produzido e consumido dentro da comuna.
“A cooperativa serviu de banco para salvaguardar a produção de café e emitimos papel moeda que dava a garantia de que o quilo de café estava aqui para ser guardado. Foi o processo que durou cerca de dois ou três anos, entre 2015 e 2018, e permitiu resolver problemas de poupança e sobreviver até que a dolarização fosse permitida no país”, explica Vanegas.
Outra comuna tradicional da Venezuela que criou uma moeda local foi El Panal, que está localizada na capital Caracas. Em meio à crise, El Panalito, como ficou conhecida a moeda, serviu para comercializar arroz e outros itens em uma espécie de troca entre a comuna e os moradores. O conselho comunal de El Panal também criou sistemas para fornecer alimentos para a população.
“Hoje, continuamos com essa política, só que agora procuramos levá-la mais longe. Temos cestas básicas solidárias, mas estamos desenhando um plano através do distrito econômico para estudar qual é o consumo per capita no município, por exemplo, de galinha”, comenta Robert Longa, porta voz da comuna El Panal.
“Agora vamos avançar para que sejamos uma área de produção socialista, uma economia que também nos permita fazer um salto na área da produção comunitária crucial e se possível, em áreas exclusivas de produção internacional que nos permitam qualificar o nosso conhecimento acumulado para avançar na modernização de todo este processo”, completa Longa.
Edição: Nathallia Fonseca