Desde quando alcançou projeção nacional, ao ser nomeado interventor federal da segurança pública no Rio, em 2018, o general Walter Braga Netto chamava a atenção pela reserva e discrição.
Assumiu a missão a contragosto. Era contrário à intervenção, uma cartada política do governo Temer, cuja popularidade estava em ruínas, e foi obrigado pelo então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, a ocupar a função –que naturalmente caberia ao comandante militar do Leste, cargo que ocupava.
Sempre ressaltou ter ojeriza a ser fotografado. Sua trajetória no Exército foi marcada por um perfil mais burocrático e gerencial do que político. Longe de ser um estrategista, era considerado um administrador competente, um oficial pragmático, um descascador de abacaxis.
A entrada no mundo palaciano, com a nomeação para ser ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, em 2020, a quatro meses de passar para a reserva, suscitou uma questão, que ganhou mais pertinência desde então e é agora revigorada pela prisão de Braga Netto: como um general de quatro estrelas avesso a holofotes e sem vocação nem traquejo político se transformou primeiro num ator político e depois num militante bolsonarista e um suspeito, conforme as investigações da Polícia Federal, de tramar um golpe de Estado?
Braga Netto está detido num alojamento no quartel-general da 1ª Divisão de Exército, na Vila Militar, no Rio, para onde foi levado no dia 14 depois de ser preso pela manhã em seu apartamento em Copacabana.
Solicitada pela PF, a prisão preventiva foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), após parecer favorável da PGR (Procuradoria-Geral da República). Segundo a PF, o general da reserva teve participação ativa no plano de impedir, por meio de um golpe, a posse do presidente Lula e ainda tentou obstruir a Justiça ao tentar atrapalhar as investigações.
Braga Netto nega as acusações e, por meio de advogados, afirma que irá provar sua inocência.
Como quase tudo que cerca Braga Netto, o quebra-cabeças da conversão do general é obscuro e intrincado. Militares que trabalharam com ele apontam três motivos principais para a guinada política/radical: 1) o combo de poder e benesses ofertado aos que chegam aonde ele chegou; 2) a convivência cotidiana com Jair Bolsonaro (PL) e o entorno paranoico-golpista do capitão; 3) a lealdade cega ao ex-presidente desde o momento em que passou a ser seu subordinado.
Tal lealdade, aliás, foi um dos argumentos –ou recados– usados recentemente por Braga Netto, via advogados, para rebater a tese lançada por Bolsonaro, também por meio de defensores, de que militares de alta patente (como Braga Netto e Augusto Heleno) usariam a trama golpista no fim de 2022 para derrubá-lo e assumir o poder —e não para mantê-lo no cargo.
Em nota, os advogados de Braga Netto afirmaram que o general “foi um dos poucos, entre civis e militares, que manteve a lealdade ao presidente Bolsonaro até o final do governo (…) e a mantém até os dias atuais”.
A Guerra Fria entre militares encrencados com a PF e a Justiça é o desfecho de uma parceria que começa antes mesmo de Bolsonaro ser eleito, com a volta escancarada dos fardados à ribalta política no governo Temer –e que na caserna teve como articuladores os generais Villas Bôas e Sergio Etchegoyen.
A intervenção liderada por Braga Netto e pelo general Richard Nunes –por ele nomeado secretário de Segurança Pública– teve um início desastroso, num Rio desgovernado, cujo trágico emblema foi o assassinato da vereadora Marielle Franco. Quando as verbas federais começaram a chegar, medidas paliativas atenuaram parcialmente a crise, com o pagamento de salários atrasados a policiais e fornecedores e compra de novos equipamentos.
Num segundo momento, houve redução de alguns índices de violência, notadamente roubos de cargas e de veículos. Foi pouco, mas, junto à sensação de segurança trazida pela presença de tanques e tropas em áreas conflagradas, bastou para que 72% da população aprovassem a intervenção e defendessem a sua continuidade, segundo pesquisa Datafolha.
O Exército considerou um êxito o seu papel na intervenção. Entidades que pesquisam violência urbana e grupos de direitos humanos têm avaliação oposta –de que foi um fracasso. É fato que atenuou por um período o problema crônico de segurança no Rio, mas a um custo de ao menos R$ 1,2 bilhão em recursos federais.
Seja como for, a intervenção cacifou politicamente Braga Netto, que em seguida foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército (o número dois da corporação), função que exerceu por menos de um ano até virar ministro de Bolsonaro.
Em março passado, surgiram ecos da intervenção, com a prisão dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa (ex-chefe da da Polícia Civil do RJ), apontados como mandantes da morte de Marielle. Braga Netto rifou Richard ao afirmar que coube ao então secretário a nomeação de Rivaldo.
Richard –que hoje é chefe do Estado-Maior do Exército– foi contido ao se queixar publicamente da postura, mas, nos bastidores, considerou uma impostura do ex-aliado.
Braga Netto caiu de vez em desgraça com a atual cúpula do Exército quando vieram à tona as mensagens em que ele desanca o general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Jr, então comandantes do Exército e da Aeronáutica.
Enfureceu particularmente os integrantes do Alto Comando a interlocução de Braga Netto com o ex-capitão Ailton Barros, expulso do Exército por uma série de transgressões e tido no Quartel-General da força terrestre como uma figura execrável.
Braga Netto não tinha amizade com Bolsonaro, e os generais Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos foram os padrinhos de sua entrada no governo. Na Casa Civil, a reputação de bom administrador do ex-interventor caiu por terra com o fiasco do governo na condução da pandemia da Covid.
Não para Bolsonaro, que prestigiou seus generais palacianos com benesses como uma portaria que lhes permitiu acumular salários e aposentadorias acima do teto constitucional –Braga Netto foi um dos agraciados. Em apenas dois meses de 2020, durante a pandemia, ele recebeu R$ 926 mil.
Depois da Casa Civil, o ex-interventor foi transferido para o Ministério da Defesa, cujo titular (general Fernando Azevedo) Bolsonaro não considerava leal o bastante. Braga Netto aumentou seu cacife com o chefe a ponto de ter sido escolhido como candidato a vice na sua chapa da reeleição.
Para um general que conviveu com Braga Netto, a raiz da conversão acrítica dele e de outros militares ao bolsonarismo é muito menos ideológica do que pragmática, associada a poder e dinheiro.
Instado a esclarecer a questão, um coronel da reserva que trabalhou com políticos e generais em diferentes governos desde a redemocratização respondeu com um artigo narrando a fábula de um sujeito que se fascina com a mulher do vizinho e termina mal, por ser um daqueles “que se deslumbram com um poder que não é o seu”.