Estudo da UFSCar revela que o sistema do animal é capaz de combater substâncias tóxicas até uma determinada concentração
O uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras e no descarte de toxicantes –como metais-traço em baixas concentrações– no solo e no ar, além de rios e lagos, são apontados como alguns dos fatores responsáveis pela diminuição das populações e o desaparecimento de espécies de abelhas.
Os reais efeitos dessas substâncias químicas nos insetos, contudo, ainda não estão muito bem esclarecidos, uma vez que estudos realizados nos últimos anos no Brasil e em outros países para diagnosticar se a exposição de abelhas a concentrações variáveis de determinados tipos de agrotóxicos alterava a taxa de mortalidade e sobrevivência, além do comportamento e órgãos internos do animal –como o cérebro–, não identificaram mudanças significativas.
“Às vezes, não é porque não se observam alterações na taxa de mortalidade e no comportamento, além de em órgãos internos específicos que podem ser impactados por um determinado agrotóxico, que o produto não está causando efeitos em abelhas”, disse Fábio Camargo Abdalla, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
O pesquisador e o estudante Caio Eduardo da Costa Domingues, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia e Monitoramento Ambiental na UFSCar de Sorocaba com Bolsa da Fapesp, identificaram que abelhas do gênero Bombus –conhecidas popularmente como mamangavas ou mamamgabas– têm um sistema celular integrado capaz de “compensar” os efeitos dos agrotóxicos e, ao combatê-los, “mascarar” seus reais impactos até uma determinada concentração e tempo de exposição.
A descoberta, resultado da pesquisa “Ação do cádmio e do Roundup® original em órgãos internos de Bombus morio e Bombus atratus (Hymenoptera: Bombini)”, apoiada pela Fapesp, foi relatada em um artigo publicado na revista PloS One.
“Os efeitos da exposição das abelhas a um determinado xenobiótico [substâncias químicas sintéticas que não atuam naturalmente no ambiente, como agrotóxicos e metais-traço] podem ser compensados por esse sistema celular integrado, que chamamos de hepatonefrocítico”, afirmou Abdalla.
De acordo com o pesquisador, o sistema hepatonefrocítico que identificaram por microcospia nas abelhas mamangavas é composto por células que integram o chamado corpo gorduroso do inseto –que têm função homóloga ao do fígado, em humanos–, além de células pericárdicas e células do sistema imune (hemócitos) do animal.
Esse conjunto de células e tecidos está localizado e disposto, não por acaso, em camadas em uma região contrátil (miogênica) ao redor do vaso dorsal (o “coração”) das abelhas –um tubo de fundo cego que se estende pelo abdômen e se abre no começo da cabeça do inseto– e funciona, de forma coordenada, como um filtro para o sangue (hemolinfa) das abelhas.
Quando as abelhas são expostas a xenobióticos, as células do corpo gorduroso são as primeiras a ser ativadas e representam a 1ª barreira contra a agressão química.
Caso as células do corpo de gordura não consigam deter o “ataque” da substância química e forem atingidas ou destruídas, são convocadas as células pericárdicas.
A resposta celular imune, porém, se dá durante todo o processo de “combate”, revelado por meio da morfologia e da contagem de células do sangue durante todo o período de exposição ao agrotóxico e metais-traço.
As substâncias tóxicas neutralizadas pelas células pericárdicas são liberadas de volta para a hemolinfa e podem ser filtradas pelo túbulo de Malpighi –o órgão excretor do inseto.
As células imunes das abelhas, por sua vez, participam durante todo o processo, explicou Abdalla.
“Essa associação de células, juntamente com o túbulo de Malpighi, funciona em abelhas de forma análoga aos rins e fígado dos humanos e representam a linha de frente dos insetos para compensar os efeitos deletérios causados pela exposição a substâncias químicas”, afirmou.
Possível biomarcador
A fim de avaliar qual o limite de compensação dos efeitos de toxicantes pelo sistema hepatonefrocítico das abelhas, os pesquisadores realizaram experimentos em que expuseram abelhas mamangavas (Bombus morio) a doses de cádmio consideradas seguras para águas de classe 1 e 2 pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), além de doses subletais de tiametoxan –o agrotóxico mais usado no Brasil– e glifosato por períodos variáveis.
Os resultados das análises de resposta celular dos insetos –realizada por meio da contagem de células do sistema hepatonefrocítico na hemolinfa– revelaram que a exposição durante 2 dias a uma parte por bilhão (ppb) de cádmio, diluído em 2 mililitros (ml) de água, provocou a morte de células do corpo gorduroso e uma intensa atividade das células pericárdicas, levando o sistema a entrar em colapso e à destruição do vaso dorsal dos animais.
“Estamos observando que isso também existe com diferentes espécies de abelhas que não somente a Bombus morio, como também Bombus atratus, Apis mellifera e em Xylocopa suspecta, que divide o mesmo nicho com a Bombus, com a diferença de que é uma abelha solitária, e não social”, explicou.
“Por isso, esse sistema hepatonefrocítico pode ser usado como um biomarcador morfológico para analisar o nível de estresse ambiental em abelhas”, indicou.
Segundo o pesquisador, a simples ativação das células que compõem esse sistema pelas abelhas ao serem expostas a um determinado tipo de xenobiótico já é um indicador do efeito nocivo da substância química, uma vez que o inseto estaria desviando metabolicamente energia que poderia ser usada para outras funções, como a atividade de coleta, para fazer todo esse sistema fisiológico funcionar.
“Isso poderia prejudicar uma colônia se extrapolado esse efeito de desvio energético para todas as espécies de abelhas campeiras expostas em campo”, afirmou Abdalla.
O sistema hepatonefrocítico também pode predizer, com bastante exatidão, quais órgãos do inseto podem ser afetados por um determinado agente toxicante ao avaliar quais os tipos de células estão sendo mais danificadas no sistema, uma vez que possuem diversas funções associadas a outros órgãos, apontou o pesquisador.
Além da desintoxicação e filtração, as células do sistema hepatonefrocítico estão envolvidas com o desenvolvimento ovariano, formação e manutenção da cutícula que recobre o corpo das abelhas (cuticulogênese), com hormônios reguladores de glândulas do cérebro dos insetos, explicou.
“Esse sistema poderia ser usado como um ponto de checagem. Ao estudar pelos métodos clássicos o efeito de um determinado inseticida neonitocinoide –que é extremamente deletério às células do sistema nervoso de abelhas– no inseto, pode ser que não sejam percebidas mudanças morfológicas no cérebro ou na taxa de mortalidade e sobrevivência do animal. Mas pode-se checar se esse sistema de desintoxicação e filtragem está sendo ativado”, apontou.
Os pesquisadores pretendem futuramente analisar por meio de técnicas de cromatografia gasosa e de espectrometria de massa as células do corpo gorduroso e pericárdicas que integram o sistema hepatonefrocítico de abelhas para estudar a dinâmica de metabolização dos xenobióticos pelos insetos.
À exemplo do que é visto no fígado humano, os agroquímicos, por exemplo, são “quebrados” pelo sistema metabólico das abelhas em moléculas menores, chamadas de segundos metabólitos.
Em determinados casos, esses segundos metabólitos são muito mais potentes e deletérios ao organismo do inseto do que a molécula original do agroquímico, disse Adballa.
“Isso existe com o tiametoxan, que é um agroquímico intensamente estudado em nosso laboratório e, quando ingerido, seu potencial toxicante pode aumentar em até 300 vezes mais”, afirmou.
Com informações da agência Fapesp.