Ataques de dirigentes das multinacionais francesas Danone e Carrefour pregando boicote aos principais produtos de exportação do agro brasileiro, soja e carne, instalaram uma crise nas relações comerciais entre países que costumam celebrar juntos os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade.
Ficou evidente que o que menos os franceses querem, no momento, é a igualdade para brasileiros no acesso ao mercado europeu. Isso já estava claro nas seguidas declarações do presidente Emmanuel Macron contra o acordo da União Europeia com o Mercosul. E se intensificou com protestos dos agricultores bloqueando estradas na França, devido às chances de o pacto comercial ser assinado na próxima reunião de presidentes do Mercosul, em Montevidéu, no dia 6 de dezembro. O que não se esperava era que empresas com forte atuação e interesses no Brasil viessem a público pregar abertamente um boicote aos produtos latino-americanos.
Primeiro, foi a Danone que atacou a soja brasileira, no final de outubro. O vice-presidente global da empresa, Juergen Esser, disse em entrevista à Reuters que a multinacional não comprava mais soja do Brasil devido a problemas de sustentabilidade. Ele não apresentou nenhuma base para a afirmação. Após forte repercussão negativa e movimento de boicote por parte dos consumidores brasileiros, a Danone voltou atrás. E afirmou que as informações divulgadas “não eram precisas”.
Boicote do Carrefour ignorou possível resposta brasileira
Em termos de importância relativa, são os europeus que mais têm a perder se boicotarem a soja brasileira. Ela atende 59% da demanda para alimentar aves, bois, suínos e peixes no velho continente. Em contrapartida, as compras europeias de farelo representam apenas 14% das exportações do complexo soja do Brasil.
No caso da Danone, o executivo francês parece ter se esquecido de que está em jogo, também, o terceiro lugar no mercado de laticínios brasileiro. E um faturamento na América do Sul de mais de US$ 1 bilhão, apenas no primeiro semestre.
A bomba mais recente foi lançada pelo CEO do Carrefour, Alexandre Bompard, que nesta semana assumiu pelas redes sociais o compromisso de “não comprar nenhuma carne proveniente do Mercosul”. E ainda disse querer inspirar outras empresas a fazer o mesmo.
Após revolta dos brasileiros, o Carrefour tentou explicar que a medida anunciada pelo dirigente se aplica apenas às lojas francesas. E que em nenhum momento “se refere à qualidade do produto do Mercosul, mas somente a uma demanda do setor agrícola francês, atualmente em um contexto de crise”. O Carrefour é a maior rede de supermercados no varejo brasileiro, com 1200 lojas e mais de 150 mil funcionários.
França praticamente já não compra carne brasileira
O pior da postura do Carrefour envolve a reputação da carne brasileira – que lidera as exportações globais – e não uma eventual preocupação com a presença do produto nas gôndolas dos supermercados franceses, que já é irrisória.
De janeiro a outubro, as exportações de carne do Brasil para a França corresponderam a 0,002% do total. Isso significa menos de 40 toneladas, volume que cabe praticamente numa só carreta. A própria União Europeia, que já respondeu por metade dos embarques de carne brasileira nos anos 90, atualmente é destino de apenas 4,8% dos contêineres.
O estrago do posicionamento do Carrefour, contudo, se espalhou. Se o Carrefour, que tem mais de mil lojas no Brasil, não mediu consequências para pregar um boicote à carne do Mercosul, não haveria porque o rival francês, Les Mousquetaires, que não tem operações no país, ficar para trás. Também pelas redes sociais, o CEO do grupo, Thierry Cotillard, endossou o boicote às carnes sul-americanas.
Agro ameaça boicotar e não fornecer carne ao Carrefour no Brasil
A elevação da temperatura chegou ao ponto de as principais entidades do setor agropecuário brasileiro sugerirem a interrupção do fornecimento de carne ao Carrefour, como represália. “Se não serve para abastecer o Carrefour na França, não serve para abastecer o Carrefour em nenhum outro país”, diz uma nota de repúdio assinada pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Sociedade Rural Brasileira (SRB) e Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
A manifestação do setor produtivo brasileiro foi prontamente apoiada pelo ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. E no mesmo tom: “ora, se não serve ao francês, não vai servir aos brasileiros. Então, que não se forneça carne nem para o mercado desta marca aqui no Brasil”.
Querendo “jogar para a torcida” e agradar os agricultores franceses, Danone e Carrefour colocaram em risco a própria imagem, a reputação e os negócios milionários que mantêm no Brasil. Nenhuma das empresas procurou embasar seu posicionamento apontando critérios objetivos de suposta “insustentabilidade” da soja e da carne brasileiras. Pelo contrário, nos quesitos ambientais, nenhum outro país se equipara à conservação adotada no Brasil, que mantém 66% do território coberto com matas nativas e obriga os produtores rurais a preservarem, dentro das propriedades, de 20% a 80% das áreas.
Guerra comercial “fantasiada de preocupação climática”
Para o professor de Economia e Direito da FGV Daniel Vargas, a guerra comercial fantasiada de preocupação climática “começou mais cedo do que se imaginava”. “Clima e meio ambiente, que deveriam ser causas nobres e comuns, estão virando, rapidamente, uma arma aberta no comércio e na geopolítica. No meio da disputa, um jogo de narrativas, amparadas mais em preconceitos que em dados e ciência rigorosa”, argumenta.
Acostumados a ditar a moda no mundo, os franceses agora estariam querendo “marcar” o Brasil como modelo ultrapassado, diz Vargas, “ainda que nossas virtudes ambientais sejam imensamente superiores às deles”.
Para o pesquisador, uma guerra comercial, sob a bandeira ambiental, será pior para a França do que para o Brasil. “Quando empresas francesas se atiram na guerra comercial para posar de ‘bom moço’, devem se lembrar que, do outro lado, há consumidores e lideranças que também poderão reagir”. Ele lembra que está em análise no Congresso Nacional uma Lei de Reciprocidade Ambiental. “Pelo andar da carruagem, a medida se torna mais necessária do que nunca”, enfatiza.
Ataque francês não tem base científica nem racional
“Na vida comercial, o diálogo e a pressão caminham lado a lado. Não é só conversa e amizade. É também disputa e pressão. Os franceses não estão se posicionando como bons debatedores. Não estão apresentando argumentos robustos. Não baseiam suas decisões em referencias científicas ou em dados sistemáticos. Estão atirando, como em uma batalha, para aniquilar o adversário, sem direito a reação. O Brasil não pode aceitar calado a pecha de vilão. Deve reagir, com vigor. Será necessário mais que argumentos”, conclui.
O que mais causou espanto entre analistas brasileiros foi a forma descuidada, e até irresponsável, como os executivos franceses trataram um país em que suas multinacionais têm ativos milionários.
“A França e suas empresas talvez não imaginem o efeito do repúdio e das consequências que essa declaração pode causar à economia francesa”, diz Paulo Matos, pecuarista presidente da Associação Sul-Matogrossense dos Criadores de Nelore. Ele destaca que, havendo retaliação, os franceses poderão pagar caro, seja na área de turismo, em que o país é um dos principais destinos para brasileiros, seja na importação de vinhos, queijos, perfumaria e outros produtos franceses.
Boicote do Carrefour seria para fazer média com agricultores franceses
Para o professor e coordenador do Insper Agro, Marcos Jank, o posicionamento das multinacionais francesas é inexplicável e “beira ao ridículo”.
“Se o Carrefour viu qualquer problema sanitário, técnico ou ambiental, ele teria que fechar a compra de carne em toda a América do Sul. Por que ele vai fechar em Paris e não em São Paulo ou Buenos Aires, onde haveria teoricamente algum problema? A verdade é que não há problema nenhum nessa carne. Foi só uma decisão política em relação a fazer uma média com os agricultores franceses, e que acaba prejudicando nossa imagem. Não por causa de volume, porque 40 toneladas não é nada. Mas é mais uma cutucada desnecessária”, diz Jank.
“Empresas gigantes, que conhecem o Brasil, que estão aqui há décadas, vão se meter agora a dizer que o Brasil não sabe produzir? É um negócio absurdo. Se fosse uma empresa que nunca veio para cá, mas é uma empresa que está instalada aqui. É uma das maiores, conhece o país, compra todos os dias carne brasileira, porque vai tomar uma atitude destas?”, questiona.
Carrefour responde em nota
A reportagem entrou em contato com a assessoria do Carrefour Brasil para atualizar o posicionamento da rede francesa quanto à polêmica criada por seu CEO. Em resposta, recebemos a seguinte nota:
“O Carrefour França informa que a medida anunciada na quarta-feira, 20/11, se aplica apenas às lojas na França. Em nenhum momento ela se refere à qualidade do produto do Mercosul, mas somente a uma demanda do setor agrícola francês, atualmente em um contexto de crise.
“Todos os outros países onde o Grupo Carrefour opera, incluindo Brasil e Argentina, continuam a operar sem qualquer alteração e podem continuar adquirindo carne do Mercosul. Nos outros países, onde há o modelo de franquia, também não há mudanças.“