A divulgação recente dos Relatórios 2023 do instituto V-DEM e da Freedom House sobre o estado da democracia no mundo provocou forte controvérsia na comunidade acadêmica e nas instituições multilaterais e de promoção na democracia. São duas instituições de grande influência e respeitabilidade sediadas respectivamente em Gotemburgo e Washington. A Freedom House produz o relatório desde 1973.
Os dois relatórios chegam a conclusões opostas: a Freedom House aponta para uma melhoria paulatina, enquanto o V-DEM alerta que avança o processo do que chama “autocratização” no mundo. O que causou mais perplexidade foi a conclusão totalmente implausível, neste último, de que a democracia teria retrocedido ao mesmo nível de 1986. Naquele ano o Leste Europeu continuava sob o jugo soviético, a Coreia do Sul era uma ditadura militar, Nelson Mandela ainda estava no cárcere e Pinochet ainda estava no poder.
No caso da comunidade acadêmica, Adam Przeworski, considerado o mais importante investigador contemporâneo sobre o tema da democracia, escreveu no Twitter que o relatório do V-DEM era uma mera “jogada publicitária”. A crítica se centra em aspectos metodológicos já comentados aqui na coluna, e que vários trabalhos recentes esmiúçam.
Em termos do debate público sobre o assunto, a crítica mais contundente é de Thomas Carothers, diretor do Carnegie Endowment for Democracy, provavelmente a instituição pública mais importante de monitoramento e promoção da democracia no mundo e que edita a revista de referência sobre o tema, o Journal of Democracy. Para ele, a conclusão do V-DEM de que o Canadá, Portugal ou Grécia deixaram ser democracias liberais é estapafúrdia.
Carothers também argumenta que o uso abusivo da expressão autocracia —que intuitivamente remete à ideia de governo absoluto por um indivíduo ou partido— produz forte dissonância no debate público. Como o Chile e Belarus (sob o jugo de Lukashenko há 29 anos) podem estar “autocratizando-se”? Rússia e os EUA supostamente estariam também se autocratizando: seus scores declinam na mesma proporção. O que significa dizer que Dinamarca está se autocratizando, se a probabilidade de que vire uma autocracia é zero?
Já discuti aqui na coluna ao longo dos últimos anos, várias vezes, as consequências do alargamento de conceitos em relação a expressões como morte da democracia e correlatos, refletindo vieses os mais variados. E já antecipei a crítica de Przeworski sobre o suposto “se está acontecendo nos EUA com Trump, está acontecendo em todo mundo”. A análise destes vieses por Little e Meng introduz novo rigor analítico neste debate.
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