Uma ofensiva legislativa contra pessoas trans está em alta no Brasil. Segundo levantamento da Folha, ao menos 69 projetos de lei antitrans foram apresentados nas esferas federal, estadual ou municipal desde o início deste ano.
A maior parte foi proposta após a retomada das atividades na maioria das Casas Legislativas do país, em fevereiro —desde então, mais de um novo PL (projeto de lei) antitrans é apresentado a cada dia.
O número pode crescer nas próximas semanas, inflamado pelo discurso transfóbico de Nikolas Ferreira (PL-MG) no plenário da Câmara dos Deputados no último dia 8.
A maior parte dos projetos é apresentada por parlamentares do PL, legenda do ex-presidente Jair Bolsonaro e de Nikolas Ferreira –no dia 10, o presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, saiu em defesa do deputado mineiro.
Mas há também iniciativas propostas por legisladores de partidos como União Brasil, Republicanos, Democracia Cristã e MDB.
Grande parte dos projetos busca proibir a chamada linguagem neutra em escolas e na administração pública. Os legisladores alegam que neologismos como “todes” e os pronomes neutros “elu/delu” ferem a gramática portuguesa e, portanto, devem ser vetados. Adeptos da linguagem neutra acreditam que o seu banimento pode levar à estigmatização de pessoas não binárias.
Parte foi apresentada depois de o STF (Supremo Tribunal Federal) declarar a inconstitucionalidade de uma lei do tipo no estado de Rondônia em 6 de fevereiro. A tramitação desses projetos deve testar a disposição de cortes inferiores de seguir o entendimento do Supremo.
Outros PLs buscam impedir o acesso de crianças e adolescentes trans a procedimentos médicos como o uso de bloqueadores de puberdade e hormônios.
Os parlamentares defendem que menores de idade não têm maturidade para tomar decisões que afetem a sua saúde. Por outro lado, especialistas afirmam que esses procedimentos podem ajudar a evitar transtornos mentais ao aliviar a disforia de gênero, como é conhecido o desconforto agudo que algumas pessoas trans sentem em relação ao próprio corpo.
O CFM (Conselho Federal de Medicina), em resolução de 2019, autoriza o bloqueio puberal a partir dos primeiros sinais da puberdade, desde que feito em instituições credenciadas com protocolo de pesquisa. O tratamento é considerado seguro e reversível, e também é prescrito para pacientes diagnosticados com puberdade precoce. Já a hormonização é permitida somente a partir dos 16 anos, sendo exigida a autorização dos pais, enquanto cirurgias de modificação corporal são vedadas a menores de 18 anos.
Há também projetos de lei que buscam proibir a chamada ideologia de gênero ou implementar o programa Escola sem Partido em instituições de ensino. Assim, tentam impedir professores de abordar temáticas relacionadas à diversidade de gênero em sala de aula.
Outra parte dos PLs busca impedir pessoas trans de participar de competições esportivas, sob a justificativa de que mulheres trans e travestis teriam vantagens indevidas sobre mulheres cis por terem nascido com um corpo que produz testosterona. Críticos da proibição afirmam que vetos esportivos contribuem para a exclusão de pessoas trans.
Existem ainda projetos que buscam proibir a instalação de banheiros unissex em estabelecimentos públicos e privados. Os proponentes dessas medidas veem o risco de que homens acessem esses espaços para abusar sexualmente de mulheres.
Banheiros unissex são vistos por algumas pessoas trans, particularmente aquelas em início de transição e as não binárias, como espaços mais seguros do que banheiros com marcação convencional de gênero –são frequentes os relatos de mulheres trans e travestis agredidas ou expulsas de banheiros femininos, por exemplo.
A ofensiva legislativa mira não só pessoas trans, mas também grupos aliados. O PL 192/2023, apresentado pelo deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP), propõe alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para “criminalizar condutas de pessoas que instigam, incentivam, influenciam ou permitem criança ou adolescente” a fazer transição de gênero. Se for aprovada, essa medida poderia levar à prisão pais, professores e profissionais da saúde que acolherem crianças trans.
São baixas as chances de muitos desses projetos se tornarem lei. Mesmo que iniciativas antitrans sejam aprovadas no Congresso, é provável que sejam vetadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ou que sejam consideradas inconstitucionais pelo STF, segundo analistas.
Por outro lado, existe risco real de que parte desses projetos avance –alguns estados e municípios já têm leis antitrans em vigor que foram aprovadas nos últimos anos. Isso pode contribuir para um ambiente social ainda mais violento para pessoas trans, diz Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
“Esses projetos de lei buscam exterminar a transgeneridade. Ao negar nosso acesso à saúde, à educação e até mesmo a banheiros, querem obrigar pessoas trans a assumir uma identidade cisgênera”, afirma ela.
Symmy Larrat, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, defende que o Legislativo aprove leis para proteger a população trans.
“A conivência com o discurso de ódio pelas mídias sociais e pela sociedade promove o terror contra as pessoas trans. Por vezes, chega ao assassinato brutal. Esse movimento tem ajudado a eleger promotores do ódio e das fake news, como é o caso de Nikolas Ferreira”, afirma Larrat, por meio da assessoria de imprensa da pasta.
Procurado, o deputado mineiro afirmou que não houve crime de transfobia ou discurso de ódio em seu pronunciamento no Dia da Mulher, e que estava apenas exercendo o direito constitucional de expressar sua opinião.
“O deputado informa que proferiu discurso tão somente com o intuito de alertar sobre a perda de espaço das mulheres nos esportes para pessoas trans. Homens e mulheres são biologicamente diferentes e possuem corpos diferentes. Negar isso, portanto, é adotar um tipo de negacionismo sem precedentes”, diz a assessoria de Nikolas Ferreira, em nota.
O deputado Kim Kataguiri e o PL foram procurados por email, mas não responderam até a publicação deste texto.