Ex-ministro nos dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o petista Tarso Genro avalia que a questão militar está pendente no Brasil, assim como na maioria dos países da América Latina, diante do histórico de participação política dos militares e de tentativas de golpe de Estado nas últimas décadas.
Em longa entrevista ao Brasil de Fato RS, Tarso defende saídas para despolitizar e despartidarizar as Forças Armadas e fala na necessidade de ‘mudar conceitos’ e aproveitar a conjuntura favorável para redesenhar atribuições de militares no país: “O Estado brasileiro tem que dar as funções próprias aos militares dentro do Estado político brasileiro”, defende. “E eu acho que esses acontecimentos agora nos dão a oportunidade de pensar essa estratégia”, completa.
Ele também destacou que os militares deveriam se dedicar a exercer políticas de Estado que são chaves para o futuro do país ligadas à defesa da soberania e ao controle do território nacional. “E é isso que o governo Lula, na minha opinião, deveria fazer, ou seja, discutir claramente um plano de defesa nacional. Eu participei da discussão desse último plano, que foi bem discutido, bem elaborado e pobremente aplicado, na minha opinião”, prosseguiu.
O também ex-governador do Rio Grande do Sul se antecipa e já rebate críticos mais afoitos: “Eu não sou uma pessoa antimilitarista, nunca fui, nem na época da clandestinidade, porque eu sempre achei que as Forças Armadas têm uma função determinada”.
Ao longo da conversa, Tarso também comenta sobre a recente decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flavio Dino, sobre a validade da Lei da Anistia para casos de ocultação de cadáveres na ditadura, mostra esperança na articulação de governos progressistas no Brasil, no Uruguai e no Chile e, por fim, fala sobre o sonho de uma formação de uma nova frente ampla no Brasil.
‘Se eu tivesse uma varinha de condão e dissesse o que eu quero que aconteça? Que se forme uma nova frente política no Brasil para tirar o poder corruptor que tem hoje o Congresso Nacional pela sua maioria de extrema direita, conservadora e fascista. Que expurgam, inclusive, das funções do Presidente da República o direito de exercer o controle do orçamento público’.
Brasil de Fato RS: Passamos pelo segundo aniversário dos episódios de 8 de janeiro de 2023, não é, com quebra-quebra na sede dos Três Poderes. Logo seguiu a prisão, algumas pessoas já foram, muitas pessoas já foram julgadas e sentenciadas. E eu queria começar te perguntando, tu achas que esse processo, e aí eu não me refiro apenas aos implicados diretamente no quebra-quebra do 8 de janeiro, eu digo todo o entorno disso, tu achas que isso está acontecendo, digamos assim, o esclarecimento desses fatos está acontecendo com abrangência e com a velocidade necessária?
Tarso Genro: Tem um preliminar que eu acho que a gente tem que fazer antes a respeito dessa questão. Não só o Brasil, mas a maioria dos países da América Latina tem uma questão militar pendente sempre, tem um histórico dos militares, de participação na política, de tentativa de golpe de Estado, até militares que tentaram revoluções populares pelo alto, como ocorreu na Bolívia em determinadas circunstâncias e também no Peru. Por que eu estou dizendo isso? Porque eu ouço muito, discuto muito a questão militar e leio bastante sobre isso, inclusive dos especialistas aqui do Brasil.
Tu achas que os civis deveriam estar mais interessados na questão militar do que eles estão? Nós devemos saber muito mais a respeito disso, nós, civis?
Saber muito mais e mudar conceitos, por exemplo, eu vejo autoridades na área militar, estudos militares que são feitos na academia, também nos grandes jornais, dizendo que se deve devolver os militares aos quartéis. Só que isso não vai ocorrer nunca, né? Porque o Estado é um Estado político e esse Estado político depende muito para o seu funcionamento, da sua estrutura militar no mundo real que nós vivemos. Então, na minha opinião, o correto seria dizer outra coisa. O Estado brasileiro tem que dar as funções próprias aos militares dentro do Estado político brasileiro. E o Estado político tem o Estado político, o Estado econômico, o Estado polícia, todas aquelas repartições que tem dentro das funções do Estado. O Estado político tem uma questão-chave para o futuro do país que é a questão da soberania. Então, um governo que quisesse despolitizar ou despartidarizar as Forças Armadas, precisamente por que que a grande maioria deles sempre estiveram ao lado o conservadorismo, da reação política e não dos interesses nacionais.
O Estado brasileiro tem que dar as funções próprias dos militares dentro do Estado político brasileiro
Sobretudo após 1964.
E antes também, com algumas variações, algumas exceções. Teria que dizer o seguinte, olha, os militares têm uma função de exercer políticas de Estado que são chaves para o futuro do país. E ter um programa, ofertar um programa concreto aos militares, nas suas funções públicas importantíssimas que eles têm, e vinculados à questão da soberania territorial, ao controle do território. E inclusive hoje, relacionar essas questões com a questão da segurança pública. Não que os militares vão atuar na segurança pública, não é essa sua função, mas saber que a questão do controle territorial tem a ver também com o crime organizado, globalmente, e por dentro do território, que vazam as grandes organizações criminosas internacionais, inclusive aquelas que preparam os golpes de Estado, como ocorre na história da América Latina. Eu não sou uma pessoa antimilitarista, nunca fui, nem na época da clandestinidade, porque eu sempre achei que as Forças Armadas têm uma função determinada.
Eu não sou uma pessoa antimilitarista, nunca fui, nem na época da clandestinidade
E o Brasil, com o tamanho que tem, não pode, de alguma maneira, dispensar a existência das Forças Armadas.
Tinha setores da esquerda, por exemplo, que achavam que tinha que existir uma possibilidade de extinguir as Forças Armadas, fazer milícias populares para controlar o país. Isso é uma bobagem rematada. Ou você faz um outro Exército, com funções determinadas pelo Estado, seja o Estado que for, ou você perde o controle sobre o território e sobre a própria independência do país. Então, quando eu digo que eu não sou antimilitarista, eu quero dizer que eu acho que as Forças Armadas brasileiras, e você pega isso no tenentismo, você pega isso inclusive na reação que houve dentro das estruturas militares contra a radicalização do golpe, que começou em 1964, cuja radicalização, para ela, teve que ser editada um ato institucional número 5, cedeu, inclusive, uma resistência em determinados setores, naquela oportunidade. Então, eu não estou dizendo que as Forças Armadas brasileiras são democráticas, que defendem a democracia. Não, elas defendem aquilo que o governo, de turno, consegue fazer com que elas obedeçam, em última análise. E eu acho que, particularmente hoje, no mundo globalizado, nas agressões permanentes, clandestinas e abertas que os países recebem, do grande capital financeiro global, as Forças Armadas têm uma função importantíssima. No controle do território, na proteção das nossas riquezas, na proteção da Amazônia, na proteção dos nossos milhares de quilômetros de fronteiras e também do nosso mar territorial. E é isso que o governo Lula, na minha opinião, deveria fazer, ou seja, discutir claramente um plano de defesa nacional. Eu participei da discussão desse último plano, que foi bem discutido, bem elaborado e pobremente aplicado, na minha opinião.
Tecnologicamente, as nossas Forças Armadas não estão muito atrás, digamos assim, dos seus deveres, porque a gente percebe que algo como 80%, 85% do custo das Forças Armadas é direcionado para salários e vantagens, ao contrário da Econter, que acontece com Forças Armadas de outros países.
Só os países altamente desenvolvidos têm Forças Armadas preparadas para guerras. Nós teríamos que ter uma Força Armada, nossas Forças Armadas, preparadas para enfrentar as ocupações ilegais do nosso território, seja as ocupações materiais formais, que são feitas através de organizações internacionais, seja as ocupações subalternas, subterrâneas, clandestinas, que se faz pelas redes, pelas religiões e por outras formas de acossamento do nosso território. E eu acho que essa seria a direção a ser dada, e preparar tecnologicamente as Forças Armadas. Por exemplo, nós estamos construindo um submarino atômico. Teve uma época que se achava que o Brasil não devia ter um submarino atômico, tem que ter um submarino atômico para vigiar a nossa costa, para oferecer serviços ao país na proteção do seu mar territorial.
No plano de defesa nacional que nós discutimos, tinha a visão, quando eu era ministro da Justiça eu participava do Conselho de Defesa Nacional, tinha a visão de implementar uma base militar na foz do Amazonas. Não sei se isso aí foi realizado, mas era uma base militar estratégica, que combinava a presença da Marinha, da Aeronáutica e do Exército Brasileiro, para que se fizesse a partir dali todo um sistema de controle territorial da Amazônia. Isso é um exemplo do que deve ser dado como função das nossas Forças Armadas. E não misturar as Forças Armadas com ativistas clandestinos, criminosos, que vão lá explorar as nossas riquezas, como ocorreu na época da ditadura. Então é por aí que nós temos que pensar essa questão, o Brasil tem uma questão militar. E eu acho que esses acontecimentos agora nos dão a oportunidade de pensar essa estratégia.
Voltando ao 8 de janeiro. A gente teve a decisão do ministro do STF, Flávio Dino, que a lei da anistia não abrangeria a ocultação de cadáveres, que se tratariam de um crime permanente. Temos um movimento de rua, ainda tímido, pedindo que não se dê anistia. Tivemos uma prisão de um militar. Ou seja, será que isso realmente vai fomentar esse movimento, de que de alguma forma revisitarmos esses crimes da ditadura que não foram punidos?
Eu acho que pode ser um estímulo, mas isso não vai se transformar num movimento de massas, num movimento social forte. Porque à medida que o tempo vai passando, as ligações afetivas, as ligações familiares, as ligações interpessoais entre aquelas pessoas perdidas e as pessoas que sobreviveram vão se diluindo, vão ficando menores. Então, não acontecerá um movimento dessa natureza, mas essa posição do Dino está correta. Eu fiz, como ministro da Justiça, eu propus uma discussão ao Supremo, que eu perdi por um voto naquela oportunidade, de que a lei da anistia não se aplicava aos torturadores. E eu desenvolvi um argumento jurídico, um argumento técnico, constitucional, que sobreviveu em parte. Sobreviveu com essas formulações que o Dino está a fazer. O que eu defendi naquela época? Fizemos as chamadas caravanas da anistia que percorremos todo o Brasil. Eu, inclusive, fui lá no Bico do Papagaio anistiar os caras que tinham participado da guerrilha. Numa solenidade que eu fui levado pela Aeronáutica, inclusive. Então, não havia oposição dos militares a que se fizesse esse tipo de coisa. Agora tinha que ter iniciativa.
Eu, quando fiz aquela reunião no Ministério da Justiça, que a metade de um Jornal Nacional falou sobre ela, me atacando, inclusive, porque eu era revanchista, eu sofri um impacto dentro do governo. E vários ministros, e alguns deles que participavam da coordenação do governo, me disseram “não é hora de fazer isso, de dizer que a lei da anistia não se aplica aos torturadores”. E eu perguntei por quê. Me expliquem, então, quando é a hora para fazer isso. Não, porque isso aí pode perturbar o governo do presidente Lula, etc. Aí eu expliquei a minha tese para eles, e alguns deles eu convenci. Eu dizia o seguinte. Diferentemente do que aconteceu na Argentina, aqui no Brasil não tinha uma ordem jurídica que absorvesse uma determinação administrativa, um decreto, uma ordem de serviço que dissesse, como foi dito na Argentina, eliminem, matem aqueles que vocês pegarem. A Isabelita fez isso. Isabelita Perón fez isso. Não foi os militares. Os militares, claro, aproveitaram aquela ordem, e daí até tiraram ela do poder, porque não podiam fazer o que queriam naquela oportunidade.
Qual é a consequência disso? Ela é aconselhada por El Brujo?
El Brujo, exatamente. O que ocorria aqui no Brasil? Aqui no Brasil nós tínhamos dois mundos jurídicos. Um mundo regulamentar, que é antijurídico, excepcional e clandestino, que era a ordem da Operação Bandeirantes. Para dar um exemplo, tinha várias estruturas. Mas essa era uma estrutura ilegal. Por que era ilegal? Porque era um centro de torturas. E mesmo na legislação da ditadura não tinha nenhuma ordem de serviço, nenhuma ordem administrativa, nenhum decreto que dissesse que podia torturar. Não tinha isso. Não existia isso. E as pessoas eram então sequestradas e levadas para este mundo subterrâneo. E ali eram seviciadas, mortas, torturadas. Fora da ordem jurídica da ditadura. Eu disse, como estava fora da ordem jurídica da ditadura, naquele momento também houve violação da legalidade.
E as pessoas eram então sequestradas e levadas para este mundo subterrâneo. E ali eram seviciadas, mortas, torturadas
Então, uma ordem de anistia não pode anistiar aquilo que a própria ditadura proibia. Porque estava vigente toda a legislação protetiva das pessoas que eram presas, assistência religiosa, a inviolabilidade do corpo, a inviolabilidade psicológica das pessoas. Tudo estava protegido. Eles tinham que levar, para a clandestinidade, a morte e a tortura. Eu dizia, não se aplique a lei de anistia para essas pessoas. É impossível aplicar. Aí, um ministro do Supremo Tribunal Federal, bolou uma tese. Não, mas inclusive, ele dizia, Teresinha Zerbini dizia, anistia total e irrestrita. Eu dizia, mas a Teresinha Zerbini não está fazendo uma norma, ela está fazendo um apelo humanista. E não está se reportando aos torturadores.
Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal entendeu que eram crimes conexos. Que foi realmente um artifício que foi posto na transição para não punir os torturadores. Alguns eles fizeram desaparecer, como Fleury, depois, para não incomodar. Mas, na verdade, a questão da permanência do crime, ela é atual. É atual, porque essas pessoas cometeram crimes comuns, desapareceram, morreram, ninguém foi julgado, ninguém foi responsabilizado. Então, esse é o processo que nós estamos tentando reviver nesse momento. Eu não acredito que vá ocorrer alguma outra reversão. E acho que essa oportunidade, que as Forças Armadas estão observando a norma constitucional relacionada com as tentativas de golpes que ocorreram, e não dando solidariedade aos golpistas, é um momento político extraordinariamente importante para o país e também para a recuperação do prestígio democrático das nossas Forças Armadas.
Tarso, a gente estava conversando um pouquinho, pouco antes de começarmos a gravar o podcast, e sobre isso, sobre esse tema também, estava lembrando a questão que foi levantada agora pelo ministro Flávio Dino. O argumento dele é que o desaparecimento, o desaparecimento, o sequestro...
É um crime continuado.
É um crime continuado, e não pode ser… Ele só para quando é… Enfim… Só para quando acaba, digamos assim. E não acabou, ele continua.
E mais do que isso, é um crime comum continuado, não é um crime político. Exatamente o que foi feito na clandestinidade e na própria ditadura.
Pegamos o caso, por exemplo, que está mais em evidência neste momento, que é o caso do Rubens Paiva. Até hoje não se sabe exatamente o que aconteceu. Sabe-se que ele foi morto, sabe-se onde estão os seus restos mortais, onde estão os restos mortais de todos aqueles que morreram na Araguaia, por exemplo? Então o ministro Flávio Dino levantou essa tese do crime continuado. Desaparecimento ou crime continuado? E teve o apoio de um ex-ministro que era o decano da corte, que era o Celso de Mello, dizendo que é exatamente isso. É um crime continuado. Não pode ser abrangido pela Lei da Anistia, lá de 1979. Como o Supremo, neste momento, está talvez em um dos momentos mais protagonísticos da sua história, que está, digamos, empoderado. Talvez fosse um momento de a gente avançar nessa questão, nessa questão desse ponto do desaparecimento. Até porque as pessoas responsáveis, digamos assim, vai ter um melindre das Forças Armadas, não sei até que ponto, porque as pessoas já morreram. Tanto as vítimas como a maioria dos algozes também. Mas ela seria uma espécie de depuração, digamos, dessa questão.
É um ajuste de contas com o passado. O Estado tem que fazer. Até porque o conceito de anistia no Brasil mudou. Eu e o Paulo Abrão, que era o meu presidente da Comissão de Anistia, nós fizemos um trabalho jurídico, político e técnico sobre isso. O que nós dizíamos na oportunidade? Anistia não é um benefício concedido pelo Estado. Porque isso significa que quem teve o poder de matar vai ter o poder de perdoar quem matou. Ou seja, estou sendo generoso dando anistia. Qual é o conceito que nós forjamos naquela época, que nós articulamos juridicamente, que se tornou o conceito dominante? Nós dissemos o seguinte, anistia é um pedido de desculpas do Estado. E começamos a instituir nas decisões da Comissão de Anistia, que eu acho que predomina até hoje, se bem que não está funcionando direito a Comissão de Anistia.
[Revisão da Lei da Anistia] É um ajuste de contas com o passado. O Estado tem que fazer
Eu até tenho uma preocupação extraordinária com isso, porque se tivesse continuado teria muita coisa para a Comissão de Anistia dizer. Todos os julgamentos que ocorreram depois que nós forjamos esse conceito, forjamos juridicamente, articulamos, sentido de forja, não se te forçar o conceito. Iniciava com pedido de desculpas. Então nós estamos se anistiando, a Comissão dizia, e pedimos desculpas. Nós estamos se dando uma indenização e também estamos pedindo desculpas. O Estado pede perdão. Então a anistia, que era o conceito do Rui Barbosa, que o Estado perdoa, era um conceito que podia funcionar e era democrático na época. E que nós estávamos ainda muito perto de todas as tradições coloniais e imperiais que forjaram o Estado brasileiro. Mas hoje não. O Estado tem que pedir desculpas por ter assassinado. Tem que pedir perdão por ter tratado os dissidentes daquela época. Mesmo que fossem efetivamente criminosos, perante o regime. Porque o regime era ilegítimo. Então é assim que deveria funcionar. Então nós tivemos avanços positivos disso aí.
O ministro Flávio Dino está sendo atento para isso. Agora como isso aí vai se desdobrar ainda no futuro do país, na minha opinião tem que se desdobrar um novo projeto para as Forças Armadas. Elas têm que estar envolvidas num projeto de nação não de uma maneira artificial, politizada ou partidária. E se as Forças Armadas têm simpatia pelo PL ou pelo PT. Não. Elas são responsáveis junto com os demais poderes que existem no Brasil pelo Estado brasileiro. Pelo seu funcionamento, pela sua democracia que é determinado pelo preâmbulo da Constituição. Que é muito pouco lido no Brasil e muito pouco conhecido, e muito pouco citado pelos juristas de turno inclusive. Porque todas as questões que estão sendo discutidas hoje no Brasil, seja em relação às questões econômicas, dos direitos civis, dos direitos políticos, do direito à liberdade, direito de opinião, estão contidas no preâmbulo da Constituição. E o preâmbulo da Constituição é o pacto político que se radia através das normas constitucionais que lhe dão sustentação. Isso aí é muito pouco aplicado pelo positivismo jurídico tradicional. Mas é isso que está certo. É isso que é verdadeiro.
O filme Ainda Estou Aqui, que é um fenômeno, ele está cumprindo também, eu acho, uma função que muitos jovens, por exemplo, a minha filha de 20 anos foi assistir ao filme com o namorado, também de 20 e poucos anos, e o namorado dela, por exemplo, certo que ele é colombiano, mas enfim, ele não conhecia nada da história da ditadura no Brasil. Assim como tem muitos jovens que não conhecem nada dessa história. E de alguma forma o filme está cumprindo esse papel. Uma sessão que eu fui assistir e quando o filme terminou as pessoas aplaudiram. E o cinema lotado durante uma tarde. Enfim, e levando muita gente que não tem filiação partidária, mas que quer de alguma forma conhecer essa história. E a história pegou muito bem porque ela tem a questão política mas tem a questão pessoal de uma família que perdeu um ente querido e nunca soube o que aconteceu com ele realmente.
Veja que nós temos uma particularidade hoje no sul do Cone Sul que é muito importante para a gente refletir sobre essas questões. Três países que vivem num regime democrático, eu diria, relativamente estável. Uruguai, que é um país muito estável democraticamente. O Chile, que é um país que está conquistando uma estabilidade ainda. E o Brasil, que é um país relativamente estável, eu diria, mais potente, mais forte ainda na sua estabilidade, que vem da Constituição de 1988, que até agora não conseguiu ser violada de maneira definitiva.
Embora tenha muita gente que queira.
Embora tivéssemos a tentativa de 8 de janeiro. Então, e aí nós temos três gerações. E eu tenho a felicidade de conhecer esses três chefes de Estado. Um, o presidente Lula, eu trabalhei com ele durante 12 anos como seu ministro de diversas pastas. O outro, Gabriel Boric, que já estive com ele duas ou três vezes, participando de colóquios e debates políticos lá com a esquerda chilena, nós fomos recebidos por ele. É um jovem presidente muito qualificado, muito interessante, mas que não tem vínculos com o passado.
Veja que o partido do Boric fez 1,5%. Como a eleição do presidente é direta, ele foi eleito pelo carisma dele, pela capacidade política dele, pela capacidade dele de ter aprendido o sentimento popular que ocorria naquele momento. Mas o governo do Boric não está ancorado nas experiências da frente popular chilena. Tanto é que os partidos tradicionais da frente têm praticamente nenhuma representação no governo do Boric. Representação forte, potente, que tenha capacidade de definir o futuro do seu governo. Já no Uruguai, nós temos um quadro político de alta qualidade também, entre a geração do Lula e a geração do Boric, que é o Yamandú Orsi, que eu tenho enorme prazer de conhecê-lo.
Qual vai ser o futuro do Orsi no governo? Eu diria, vai depender de como ele se relacionar com o Chile e com o Brasil
E atuou bastante nessa eleição também, não é, Tarso?
Atuei, ajudei. Que eu pude, pelo menos. Eu fui, inclusive, no lançamento do Boric, quando o Pepe Mujica apresentou ele, o Mujica nos convidou. Do Orsi. Do Orsi, perdão. Ele foi apresentado como candidato do Mujica, que é uma figura extraordinária do mundo, não é, não é? Só uma figura da América Latina. E o Orsi, ele é o acordo possível dentro da Frente Ampla, pra manter a Frente Ampla unificada e fazer um juramento democrático fundamental. Que é um homem da Constituição, é um homem do Uruguai, é um homem popular e democrático. Qual vai ser o futuro do Orsi no governo? Eu diria, vai depender de como ele se relacionar com o Chile e com o Brasil. Por quê? Porque nas costas dele tem um traidor da história latino-americana que se chama Milei. Que é um fascista, que é um psicopata, e que é aceito, mundialmente, como se fosse um líder de direita absorvível. Não é. Ele é um bandido. É um homem que diz que tira as suas melhores ideias conversando com seus cães. Inclusive um cão morto. É um psicopata que sai do poder na Argentina e que é absorvido pelas classes dominantes como se fossem naturais. Seria possível acontecer isso aqui no Brasil? Sim, já aconteceu.
Já aconteceu (risos).
Veja como o nosso… A problemática é universal. Então tem alguns companheiros que são impacientes com o Boric porque acham que ele não conseguiu formatar um governo de esquerda. E ele realmente não soube aproveitar, na minha opinião, a herança da frente popular. Mas ele está aprendendo. Gradativamente. E é um líder superior a todos os demais líderes que surgiram nessa geração. E que está enfrentando, de maneira relativamente qualificada os enigmas do processo. No Orsi nós temos uma fortaleza e no Lula nós temos uma fortaleza maior da democracia na América do Sul. Não resta dúvida. O que eu estou defendendo neste sul do Cone Sul? Eu digo para as pessoas. Nós temos que trabalhar a tríplice aliança do bem. Porque a última tríplice aliança que teve foi a tríplice aliança que dizimou Paraguai, da guerra do Paraguai.
A tríplice aliança do bem significa buscar os pontos comuns. E eu acho que o passo que foi dado, embora se tenha restrições ao conteúdo do acordo do Mercosul, o passo que foi dado é politicamente extremamente importante. E a partir dessa relação, dessa tríplice aliança, Brasil, Uruguai e Chile, nós podemos isolar o mal. E qual é o mal hoje? É o Milei. Um cínico, um fascista, um psicopata que está no governo aqui nas costas do Uruguai. E se nós conseguimos organizar a partir desse acordo do Mercosul, inclusive buscando melhorar algumas cláusulas importantes, melhorar inclusive a vigilância social e popular das instâncias da sociedade sobre esse acordo, pode ser um elemento vital para que o sul do Mercosul a partir das próximas eleições tenha também a Argentina do nosso lado. Porque esse calcanhar de Aquiles que o fascismo conseguiu aqui na América do Sul, ele é extremamente grave. E pode ser repetido. Tanto é que já houve aqui no Brasil.
Mas o Milei vai ter uma grande força aí a partir de janeiro que é o presidente dos Estados Unidos, né? Trump.
Veja, o Trump, sim. Ele é uma dificuldade enorme. Mas ele não muda o caráter imperial que teve os Estados Unidos durante o governo Biden. Permanece o mesmo. Com uma diferença que pode ser uma diferença que leve ele a enormes dificuldades, que é a utilização das barreiras tarifárias para os Estados Unidos se relacionar com o que proporciona, portanto, a maior possibilidade de uma agressividade política maior da China. A política comercial, de importação e exportação, e de presença inclusive econômica na América do Sul. Então, esse apoio que o Trump deu ao Milei, ele pode ser relativizado. Porque esse pessoal, ele vê as suas divisas, ele vê os seus problemas. Veja o seguinte, se ele aplicar uma tarifa de 100% dos chineses, os chineses vão inundar o mundo com suas mercadorias, com preços rebaixados, preços artificiais inclusive, e vai reduzir o potencial de mercado para os norte-americanos, que estão cada vez mais isolados globalmente. Então não é muito fácil também o serviço do Trump, embora evidentemente ele seja uma ameaça militar para a América Latina maior do que seria o Biden, porque os governos democráticos, democratas, norte-americanos, sempre foram intervencionistas e agressivos também do ponto de vista militar.
Trump não muda o caráter imperial que teve os Estados Unidos durante o governo Biden. Permanece o mesmo
Dizem que os democratas começam as guerras e os republicanos terminam as guerras.
É, efetivamente ocorreu isso.
Quem começou a guerra do Vietnã foi o Kennedy.
Foi o Kennedy. Quem invadiu Cuba foi o Kennedy.
Tarso, os Estados Unidos são hoje o maior fator de desestabilização do planeta, de ameaça à paz do planeta. Na verdade o governo Biden está envolvido em pelo menos dois grandes dramas dos últimos anos, que é a questão da Ucrânia, a questão da OTAN e Gaza, que é uma coisa monstruosa. Qual é o risco que tu achas que os Estados Unidos representam para a paz mundial? Me parece que como a história do destino manifesto, a história do povo eleito, da necessidade de ordenar as coisas em qualquer parte do mundo, com suas 700 bases militares espalhadas pelo mundo, parece que eles são realmente o grande fator desestabilizador. O que tu achas disso?
Do ponto de vista militar, é verdade. Estados Unidos sempre foram, sempre foi os Estados Unidos um estado guerreiro, um estado violento. Desde a formação de Estado americano, conquista do Oeste e daí para frente. Agora eu acho que o perigo maior do presidente Trump não é necessariamente a questão militar. E no jogo militar, tanto democratas como republicanos fazem mais ou menos o mesmo.
Eles acham que os Estados Unidos têm um papel de polícia do mundo. Pode mudar a sua atenção policialesca para uma parte do mundo e outra para outra parte do mundo, segundo os interesses das elites que eles representam. Por exemplo, a ocupação do Iraque gerou um surto de construção civil dos Estados Unidos, para construir o Iraque. Então estavam lá aquelas grandes corporações de construção pesada e de construção habitacional reunidos com o presidente Bush e ele disse, essa é a minha base.
É a base dele, exatamente.
Então, inicia o louco Iraque, um ataque militar e depois foi lá e construiu, cobrando o preço de petróleo, preço de ouro e assim por diante. Então eu acho que o perigo maior que tem o Trump em relação à administração democrata é a questão climática. Porque ele debocha da questão climática. E a questão climática agudiza disputas territoriais e lutas nacionais internas em todos os países que estão no segundo grupo das grandes potências mundiais. Isso aí permite, por exemplo, que o Trump coesione em escala global todo o negacionismo climático e transforme essa questão do negacionismo em uma potência política para destabilizar os países que estão disputando ainda a aplicabilidade ou não desses conceitos no seu desenvolvimento interno. E aqui o Brasil é um exemplo. Aqui nós temos setores das classes dominantes, o agronegócio, por exemplo, que estão se lixando para a questão climática, que acham que não tem um nível de desigualdade.
O mesmo que negocia golpes.
Exatamente. Aqui no Rio Grande do Sul que diz que é mentira a questão climática, que não tem questão climática. Isso é invenção comunista. E isso aí cala na cabeça das pessoas e também pega o oportunismo político desses setores que querem utilizar isso para desenvolver a sua política interna, de combate interno. Então a situação é mais perigosa para o mundo, porque os Estados Unidos vão continuar um país guerreiro e agressor e vão somar a isso o negacionismo climático, que é muito desestabilizador também da parte mundial.
Dentro disso, Tarso, desse perigo na verdade ideológico do que Trump representa e essa extrema direita, tem também um movimento que a gente fala pouco sobre isso, que é o tal do QAnon e que é essa visão que eles lançam no mundo de que Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei, fazem parte de uma aliança do bem para salvar a humanidade. E isso se infiltra nas religiões, a gente vê isso nos neopentecostais, mas também vê isso dentro de movimentos espiritualistas. Há pouco tempo saiu aí um grande líder também da aliança da união vegetal, o pessoal da UASCA, enfim, ele vai se infiltrando por tudo.
É exatamente isso, é o momento em que as filosofias que dão sustentabilidade à direita elas passam a ser também uma psicopatia social, seja a partir da dominação sobre o território, seja a partir de um determinado negacionismo, seja a partir da afirmação de uma raça, como fez Adolph Hitler ao seu tempo. Então isso aí, no sentido da modernidade, isso aí é um avanço de irracionalismo dentro da modernidade, porque o racionalismo não é o avesso do irracionalismo, ele é uma outra face do racionalismo ocupado por determinadas mentes políticas, psicopáticas ou doutrinárias que vão utilizar a razão de maneira inversa.
O que o Hitler dizia, por exemplo, é que o futuro da Alemanha e o futuro do Estado alemão depende da unificação racial. E aí ele transforma isso aí num dogma que chegado na cabeça das pessoas que formam opinião transmitem aquilo para gerações e se torna uma determinada cultura. Então esse movimento Qanon, na verdade, ele não é um movimento atípico, ele é religioso mas é, sobretudo, um movimento que instrumentaliza a religião e, portanto, é um movimento político, na verdade, de espiritualização da política e de dominação das mentes que encontram um determinado líder, seja o tipo Hitler, seja o tipo Trump, seja o determinado tipo como Bolsonaro, e por aí eles vão se desenvolvendo.
Eu diria que é muito mais difícil você enfrentar movimentos como esse porque a forma através da qual a sociedade capitalista moderna se estruturou, que era em classes sociais mais ou menos fixas, que se reconheciam como adversárias ou como inimigas e negociavam e combatiam de maneira mais ou menos previsível, já não existe mais. Essa sociedade está fragmentada, dissolvida, esquartejada e ela se forma muito mais em torno de tribos, de grupos fechados, de grupos religiosos, de pequenas comunidades alternativas de direita, que eu estou falando, do que propriamente tendo um sentido classista.
Qanon não é um movimento atípico, ele é religioso mas é, sobretudo, um movimento que instrumentaliza a religião
Hoje você vê, por exemplo, para dar um exemplo concreto, um motorista de Uber ou um entregador, você conversa com ele e diz, mas você não acha que deveria ter um contrato de trabalho, um CLT? Não, eu controlo a minha vida. Aí você pergunta, trabalha quantas horas por dia? Ele diz, “trabalho 14 horas, mas se eu quero eu vou buscar a minha filha no colégio”. Então oferece determinadas alternativas individualistas que têm racionalidade para a pessoa e lançam ela num outro espaço social, que é a auto deserção da sua condição de explorado, em última instância. Isso aí é uma coisa que verte em todo mundo, em todas as sociedades hoje em dia e que vem eliminando a possibilidade de pactos sociais democráticos.
E isso acontece especialmente através das redes, que nós vivemos, além da explosão e da presença das redes nas nossas vidas, a gente vive também um uso, um uso industrial da mentira, uma fabricação em termos industriais da mentira. Isso que a Kátia falou, a questão do Qanon, é uma das fábricas, digamos, eles chegaram a dizer, por exemplo, agora me lembrando desse episódio, vou citar porque é espantoso, que os democratas, especialmente os da Califórnia e aqueles que eram os apoiadores democratas, as celebridades, o pessoal do show business, que eles sequestravam crianças para sugar, para tirar o sangue das crianças, onde fazia uma outra, uma outra substância, tinha uma substância para se manterem jovens. Então, esse tipo de coisa, se a pessoa recebe 20 vezes essa informação durante o dia, ela vai acabar daqui a pouco acreditando naquilo, aí eu lembro que um homem dos tempos modernos é Joseph Goebbels, a quem se atribui aquela frase, né, que uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade. Então, tu tens muito isso nas redes, porque não é só uma vez que aquilo te chega, aquilo te chega muitas vezes. Por exemplo, tem a história agora dos sósias do Lula. O Lula já morreu, né? Tem seis sósias, que eles se intercalam e tal, na inteligência artificial.
Nós somos aqui os três, somos os gaúchos, né, gaúchos e gaúchos. Quando é que nós imaginamos que nós viriamos aqui no nosso estado culto, no Rio Grande do Sul, um conjunto grande de pessoas com um celular na cabeça, na frente do quartel, para receber uma mensagem dos extraterrestres, daí diz um amigo meu, é o nosso estado culto, mas eu… Em Porto Alegre! Em Porto Alegre! Em Porto Alegre não é um estado culto!
A vanguarda da esquerda!
Que tem uma parte da população que faz isso, vai para a frente do quartel com o celular na cabeça fazendo sinal para os ETs virem resgatá-los. Então, agora, esses momentos de crise na humanidade, ele sempre é sucedido por deformidades sociopáticas, né, que geram determinados movimentos políticos, movimentos sociais. As grandes heresias na época, na Idade Feudal, por exemplo, eram com atipicidade, porque a religião católica veio com a sua dogmática, com os seus mandamentos, com a sua ordem, instauraram uma determinada ordem, né, que era de proveito dos senhores feudais, e aí estruturou e a sociedade começou a se estabilizar.
Mas essa estabilização tinha gente que não cabia dentro dela. E elas fugiam para as heresias, né, para se opor a esse tipo de dominação. E aí vem as bruxas, vem a queimação das bruxas, vem o assassinato de crianças, vem o sacrifício de pessoas, né, feitas pela Inquisição. Inclusive, para defender a ordem estabelecida. Então, o que nós estamos vendo hoje é mais ou menos uma decomposição análoga, né, e potencializada pelas redes que ocorreu naquele momento, né, que se dava pelos pregadores.
E isso tem anos atrás, os anos 20 do século passado foram férteis também nesse tipo de coisa, né, no avanço do extremismo de direita, né, como Mussolini tomou o poder nos anos 20, né, o Hitler no início dos anos 30, tu tens um avanço dessa direita mais radicalizada em contraposição à direita tradicional, parece que é um pouco que acontece isso agora também. Parece que aconteceu aqui, aconteceu aqui e está acontecendo em outros lugares também.
E eu acho que isso põe, agora transferindo essa nossa reflexão para o panorama da política, para o panorama político nacional, isso impõe as formações no campo da esquerda, que tem uma visão fundamentada na defesa da democracia e da república, que tem que reorganizar o sistema de alianças do país. Porque se não tiver essa reorganização do sistema de alianças, nós corremos o risco de que a direita tradicional, a direita se estrutura dentro da sociedade civil e se estrutura dentro da esfera da política de uma maneira democrática, dentro da sua visão de democracia, ela possa se dirigir para a extrema direita e fazer aqui no país, revigorar aqui no país aquilo que ocorreu na época de Bolsonaro. Nós tivemos um centro, uma centro-direita, uma direita tradicional, uma direita oligárquica que transformou Bolsonaro num grande líder nacional, com a cumplicidade da grande imprensa, que foi naturalizado, Bolsonaro numa ordem jurídica democrática justa ele teria que ser preso quando ele fez aquele discurso, ele teria que ser preso em congresso, em flagrante, pelo presidente da sessão. O senhor está cometendo um crime contra a humanidade, eu estou decretando a sua prisão preventiva e o senhor deve ser apresentado ao Poder Judiciário, estou fazendo uma denúncia criminal, estou fazendo uma denúncia de um crime e, portanto, o senhor se apresente para a autoridade.
Só para ficar claro, o discurso na votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Perante a torturada, ele cometeu um crime contra a humanidade e um crime de injúria, de agressão psicológica violenta para a presidenta da República que estava sendo julgada naquele momento, julgada também ilegalmente na minha posição, mas estava dentro das formalidades constitucionais, por assim dizer.
É interessante isso como, digamos, na convivência política a gente percebe, por exemplo, eu lembro perfeitamente que nos anos 70, mesmo durante a ditadura, anos 60, 70, era muito difícil uma pessoa dizer assim, eu sou de direita. Ninguém era de direita, todos eram democratas ou no máximo de centro. Eu me lembro até que um coronel da brigada, talvez tu lembres disso, chamado Milton Weirich, nas primeiras eleições, eu acho que foi em 1982, ele concorreu a deputado estadual e na publicidade dele dizia, eu sou de direita e ele não se elegeu. E era o único candidato, era o único candidato da direita que se dizia de direita. Hoje é o contrário, as pessoas batem no peito e dizem, eu sou de direita. Não estão dizendo ainda, pelo menos por enquanto, eu sou de extrema direita, seria o mais sincero.
Mas já tem dizendo também.
Seria o mais sincero. Em que momento a condição de direita deixou de envergonhar as pessoas?
Eu acho que foi precisamente no momento em que o Bolsonaro aparece como líder de extrema direita com capacidade de chegar ao poder. E a grande mídia tem uma grande responsabilidade disso aí. Ela sempre foi muito hábil em denunciar quem era de esquerda, quem era esquerdista, quem era radical de esquerda, quem era guerrilheiro, quem não merecia respeito da sociedade porque cometia violência e fez isso de uma maneira muito eficiente durante toda a transição do regime autoritário, ditatorial, para o regime democrático. O que nós devemos nos perguntar, na minha opinião, é porque essas pessoas não foram denunciadas. E eu acho que elas não foram denunciadas por dois motivos. Porque, em primeiro lugar, a democracia tradicional, a democracia burguesa clássica, não cumpria mais as suas promessas. E o regime liberal democrático estava afastado do cumprimento das promessas que vieram da Revolução Francesa e da própria Constituição de 1981.
Esse é o primeiro motivo. E o segundo motivo é o motivo mais complexo, que está relacionado com a necessidade de ancoragem que as pessoas têm, numa determinada maioria, para poder operar politicamente. Eu acho que essa credibilidade que a grande mídia deu para o Bolsonaro no seu início de carreira, permitindo que ele dissesse, por exemplo, impunemente, e até ilujando a coragem de dizer que queria matar o Fernando Henrique, que 120 mil deveriam ser fuzilados, essa naturalização foi fundamental para formar uma maioria que apoiou a extrema-direita no país.
Porque a maioria não é de extrema-direita. A maioria votou na extrema direita. Tanto é que parte dela depois votou no presidente Lula. Então nós temos esse complexo de formação dos corações e mentes, que a grande mídia oligopólica sempre faz. Está fazendo aqui em Porto Alegre, por exemplo, com o prefeito da cidade. O prefeito da cidade não tem nenhuma responsabilidade com nada. Ao contrário, todas as notícias que ocorrem sobre a corrupção no seu governo terminam com uma frase. O prefeito não está sendo investigado. Só pode ter dito muito obrigado.
Então nós temos esse complexo de formação dos corações e mentes, que a grande mídia oligopólica sempre faz
Tem que rir para não chorar.
É assim que vai funcionando. Vai formando um determinado ethos social de legitimação da barbárie. E é isso que nós vimos no assento do Bolsonaro. E o que funciona não funcionaria se a mídia cumprisse com as suas funções informativas e educacionais, inclusive, que a mídia tem que ter. Isso está na Constituição. Não sou eu que estou dizendo.
Educacional é um bom termo. Aliás, o máximo que se dizia a respeito do Bolsonaro, que a mídia dizia a respeito do Bolsonaro, é que ele era polêmico. É, polêmico. É um polêmico, Bolsonaro. É uma palavra onde se escondeu toda a mídia. Atrás da qual se escondeu toda a mídia. Assim como a ditadura era branda…
Hoje, a própria mídia brasileira, não toda, claro. Tem exceções brilhantes, inclusive, na imprensa tradicional. Mas a massa da mídia brasileira, a maior parte da mídia brasileira, é o que diz a respeito do Milei. Ele é uma pessoa estranha. Excêntrica. Ele é autêntico. Não, o cara é um psicopata delirante.
É. Isso é outra coisa que a gente precisa. Eu acho que é até uma tarefa revolucionária, digamos assim, de trazer as palavras para o seu verdadeiro sentido. E é o que ele é. O senhor tem que chamar as coisas pelo seu nome. Exatamente. Quem é? O velho dá nome aos bois, né? O centrão. O centrão nunca foi centrão. O centrão é o direitão.
Aqui em Porto Alegre, por exemplo, a maioria dos empresários aqui de Porto Alegre eram favoráveis ao golpe militar. Não se iluda a respeito. Eles falavam entre eles. E muitos falavam publicamente, inclusive. Até chegou um determinado momento que eu fui convidado para ir lá na Federasul, num almoço, participar de um debate. E eu disse que eu não ia. Fui convidado como ex-governador de Estado. Aí a pessoa que me convidou disse assim, por que que tu não vais? “Eu não vou porque a Federação é dirigida por fascistas, que são apoiadores do Bolsonaro e que tiveram a coragem, nas eleições que o [Miguel] Rosseto concorreu ao governador, disseram a ele que não convidava ele para ir lá, porque ele não era adequado para os fins que são dados para a Federasul. É por isso que eu não vou. Enquanto eles não pedirem desculpa para o Rosseto, eu não vou. Eu disse. E não vou mesmo. Até almoço lá no restaurante da Federasul, eu andei para fazer algumas reuniões, nas salinhas. Mas eu não vou em reunião dele. Eles têm que pedir desculpa para o Rosseto e para o PT. Os outros companheiros, às vezes vão e têm que ir porque estão em funções públicas. Mas eu como não estou mais, eu vou em liberdade.
Tarso, estamos chegando ao fim, infelizmente. A gente podia ficar aqui horas conversando sobre… Outra hora ele vem de novo. Vem de novo. Para conversar com a gente. Terminamos um ano que foi muito difícil, em vários sentidos, principalmente para nós aqui no Rio Grande do Sul, a questão das enchentes, enfim. Mas politicamente também não foi um ano fácil. Estamos começando um novo ano, 2025, e me parece que também não vai ser um ano muito simples, tanto politicamente como no mundo. Isso que tu trouxeste da questão das mudanças climáticas, enfim. A gente ainda vai ver muita tragédia pelo mundo. E quem estuda o tema sabe disso. Como que tu está avaliando esse cenário? Eu sei que tem um pouquinho de tempo para falar sobre isso, mas eu queria saber um pouco.
Eu estou procurando simplificar a minha atividade política. Às vezes as pessoas me perguntam na rua, mas tu não vais mais ser candidato, tu deixou da política. Não, mas candidatura é um aspecto da política. E não é o exclusivo, e às vezes nem é o mais importante. Embora sempre seja importante. Mas às vezes para determinadas pessoas não é o mais importante. Eu acho que o que eu posso contribuir com o meu país hoje é desenvolver um trabalho político regional e nacional pela formação de uma nova frente política.
Uma nova frente que, inspirada em outros exemplos, como a frente popular do Chile na sua época, como a frente ampla nesta época, consegue manter a unidade do campo democrático preservando as identidades de cada parceiro e não aceitando qualquer cumplicidade com a extrema direita. Eu acho que esse exemplo é um exemplo significativo. E eu acho que nós temos movimentos hoje no Brasil, tem vários movimentos, eu posso citar dois, que são movimentos que tem pessoas de esquerda, de direita, de centro direita, que são importantes, como Derrubando Muros, como Direitos Já, e outros movimentos que são pessoas interessadas em reformatar a ação política no país. Eu diria o seguinte, se eu tivesse uma varinha de condão e dissesse o que eu quero que aconteça? Que se forme uma nova frente política no Brasil para tirar o poder corruptor que tem hoje o Congresso Nacional pela sua maioria de extrema direita, conservadora e fascista. Que expurgam, inclusive, das funções do Presidente da República o direito de exercer o controle do orçamento público.
Confira a íntegra da entrevista
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo