Sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), a Polícia Militar de São Paulo acumulou 737 assassinatos em 2024, conforme dados do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público (Gaesp-MPSP).
O número representa um aumento de 60,2% em comparação com 2023, o primeiro ano do mandato de Tarcísio, e um crescimento de 86% em relação a 2022, último ano do governo de João Doria e Rodrigo Garcia, ambos do PSDB, quando foram registradas 396 mortes provocadas por policiais.
Leonardo de Carvalho, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), atribui o aumento ao afrouxamento das medidas de controle do uso da força a partir do governo Tarcísio de Freitas.
“Todo o aceno da política de segurança pública do governo Tarcísio é na linha do endurecimento e do fortalecimento do policiamento ostensivo, sobretudo com aquelas ações que acabam a resultando em confrontos. Tanto é que a gente vê uma alta da letalidade policial”, diz em entrevista ao Brasil de Fato.
Dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), sob o comando de Guilherme Derrite, ainda que restritos até o terceiro trimestre de 2024, confirmam a tendência de alta.
Em 2023, primeiro ano da gestão Tarcísio-Derrite, o número de mortes subiu 19% em relação ao ano anterior, passando de 384 para 457. Já até o terceiro trimestre de 2024, a polícia militar paulista matou 552 pessoas, o que corresponde a um aumento de 62% em comparação com o mesmo período de 2023.
“Eu vejo mais relação direta com a mudança de gestão, dada a postura do governador, do secretário de segurança e do próprio comandante da Polícia Militar. Não foram casos isolados. Isso é resultado, na verdade, de um afrouxamento das medidas que até então estavam sendo postas em práticas e que estavam impactando a letalidade policial”, diz Carvalho.
Confira a entrevista na íntegra:
O que pavimentou esse aumento?
O que a gente está vendo aqui, na verdade, é uma estabilidade muito alta da letalidade policial ao longo desses primeiros anos. Isso só começou a mudar no final de 2020. Mas o grande decréscimo mesmo foi de 2020 para 2021.
Não dá para a gente creditar só à pandemia, que começou em 2020, até porque a letalidade só começa a cair no final do ano. E é justamente foi no fim do ano que começaram a ser implementadas algumas medidas que foram estudadas pelo governo de São Paulo, mais diretamente pela Polícia Militar.
A Polícia Militar assumiu o controle da força e a redução de letalidade como um objetivo institucional a ser buscado. A corporação entendeu que precisava se esforçar para lidar com essas questões, e a partir daí foram implementadas uma série de medidas, dentre elas as câmeras corporais. Mas eu destaco também a compra de equipamento menos letais, as armas de incapacitação neuromuscular, os chamados tasers, alguns procedimentos internos também para apuração, fiscalização e controle do uso da força da letalidade policial, como as comissões de mitigação.
As comissões são formadas pelos próprios policiais para analisar todos os casos de indício de uso abusivo da força e de ocorrência com morte. Os policiais faziam uma apuração não só para buscar identificar uma responsabilização no sentido correcional, mas também para verificar se o protocolo foi seguido, o que pode ser melhorado no protocolo, o que não pode. Ou seja, uma análise desses casos para aperfeiçoar a atividade policial. Isso surtiu efeito de 2020 para 2021 e de 2021 para 2022.
De onde surgiram essas medidas?
A Polícia Militar assumiu esses temas como prioridade. Foi um reconhecimento institucional de que era preciso controlar o uso da força e reduzir a letalidade. Isso partiu, na verdade, de um amadurecimento institucional da própria Polícia Militar. Essa mudança já vinha de anos anteriores. O que aconteceu foi que as medidas que estavam sendo estudadas foram implementadas.
Tiveram alguns casos emblemáticos que impulsionaram isso, como caso da Favela Naval de Diadema, por exemplo, que fez com que a polícia entendesse que era preciso rever sua postura institucional lá atrás. Recentemente, a gente teve o episódio de Paraisópolis, que também um impacto institucional muito forte, que, inclusive, culminou na troca de comando.
Essa mudança de postura institucional foi o que possibilitou a implementação dessas medidas, que já vinham sendo estudadas internamente pela polícia. E aí a gente vê que, em 2022, a polícia militar atinge o menor número de letalidade.
Em 2023, que é o primeiro ano do Tarcísio de Freitas, a gente vê um leve crescimento. Ele coloca à frente da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo um ex-policial militar, e isso já faz com que a balança acabe pendendo para um lado, uma vez que há uma rivalidade entre as polícias civil e militar. E aí o que se fez foi acenar que a política de segurança pública vai ser baseada em atividade ostensiva de policiamento.
E a figura do Derrite também reforça esse aceno, certo?
Todo o aceno da política de segurança pública do governo Tarcísio é na linha do endurecimento e do fortalecimento do policiamento ostensivo, sobretudo com aquelas ações que acabam a resultando em confrontos. Tanto é que a gente vê uma alta da letalidade policial.
É importante destacar também que o Tarcísio, durante a campanha, uma hora ele falava que acabaria com as câmeras. Outra fora, ele falava que ia continuar. Tudo isso vai passar uma mensagem dúbia de que essas medidas, que proporcionaram transparência da atividade policial e que impactaram a letalidade, colocam em xeque a continuidade desse programa, e os policiais acabam entendendo isso. Não à toa, agora no final de 2024, a gente assistiu a uma série de episódios lamentáveis, de uso excessivo da força por parte da polícia, de homicídios provocados por policiais em serviço. Esses episódios só vieram à tona de fato por conta da captação de imagens.
Dos casos mais emblemáticos que saíram na mídia, teve o caso do Gabriel, assassinado com 11 tiros nas costas por um policial militar de folga, na saída de um supermercado. A gente teve o caso do homem jogado da ponte durante uma abordagem policial. A gente teve o caso do Marco Aurélio, aquele estudante de medicina assassinado por um policial militar durante uma abordagem. E a gente teve o caso menino Ryan, em Santos, morto com um tiro disparado por um policial militar.
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Desses 4 casos, só o do menino Ryan não conta com imagens. Não à toa, foi o único do qual a gente não viu uma manifestação de solidariedade por parte do governador e do secretário. Em todos os outros casos, houve manifestação por parte do governador e do secretário, porque as imagens são contundentes. As imagens foram capazes de desmentir o depoimento inicial dado pelos policiais.
No caso do menino Ryan, o secretário de segurança chegou a sair em defesa dos policiais, alegando legitimidade da ação policial, mesmo antes do início da investigação. Então, essa postura é muito prejudicial para uma política de segurança pública transparente, baseada em evidências e provas técnicas.
E acena uma legitimidade para os policiais que estão na ponta.
É isso. Traduzindo para um termo do próprio linguajar da área: se a ocorrência não estiver “quadrada”, a gente “passa o plano”. O policial que está na ponta e faz uso da força entende nessa postura dos gestores um estímulo para atuar fora dos protocolos. Uma vez que entende que vai ter a aprovação e até a cobertura dos seus gestores. Por isso, a importância das imagens para justamente confrontar com os depoimentos de policiais.
Então você associa esse aumento a essa mudança de governo?
Isso. Eu vejo mais relação direta com a mudança de gestão, dada a postura do governador, do secretário de segurança e do próprio comandante da Polícia Militar. Não foram casos isolados. Isso é resultado, na verdade, de um afrouxamento das medidas que até então estavam sendo postas em práticas e que estavam impactando a letalidade policial.
No final do ano passado, a gente viu uma mudança no posicionamento do Tarcísio. Ele chegou, inclusive, a recuar da sua posição contrária às câmeras corporais. Isso pode ter um impacto positivo na diminuição da letalidade?
Eu acho importantíssimo esse reconhecimento por parte do governador de que, a partir de um maior entendimento do tema, ele tinha uma visão equivocada das câmeras, das medidas de controle e do uso da força por parte da polícia. Mas a gente precisa que esse reconhecimento se traduza e se cristalize em ações práticas.
Por exemplo, quando a gente teve o caso do homem jogado da ponte, fala-se em erro emocional por parte do policial. Ora, não dá para adotar essa postura de querer individualizar mais um caso que vem no bojo de uma série de casos. Essas declarações são entendidas pela tropa como um sinal ou estímulo.
Então essa mudança de postura do Tarcísio precisa se traduzir em medidas, porque até então a gente não viu nenhuma troca por parte da gestão de Segurança Pública de São Paulo, por exemplo. É preciso que a mensagem do comando da gestão chegue até a ponta. É preciso que essa mensagem venha por parte de treinamento, de fortalecimento dessas ações que estavam sendo afrouxadas e descontinuadas. A gente aguarda.
Se a gente se recordar também, em paralelo a tudo isso, a Secretaria de Segurança estava numa ação de enfraquecimento da Ouvidoria das Polícias, que hoje é independente, com a tentativa de criação de uma ouvidoria paralela. Aí fica parecendo que o Tarcísio, quando anunciou uma mudança de postura, estava fazendo um discurso midiático para conter uma crise.
E aí a gente precisa entender que a segurança pública não dá grandes guinadas e não consegue mudar de uma maneira repentina. Como a gente brinca, não é que nem Miojo que em cinco minutos está pronto. É preciso que haja um planejamento. Até que essas ações sejam capilarizadas e cheguem ao entendimento do policial que está ali na ponta, isso demanda tempo e esforço por parte dos gestores.
Então não é porque o Tarcísio declarou que mudou de opinião que as coisas vão automaticamente virar uma chave e voltar a rodar como rodavam antes. Essas políticas sofreram uma desidratação ao longo desses dois anos, e é por isso que é fundamental que agora esses gestores que dizem ter mudado o entendimento sobre o tema se debrucem e gastem energia justamente para fortalecer novamente essas medidas.
Edição: Martina Medina