Mais um alto executivo de multinacional francesa com forte presença no Brasil disparou contra a possibilidade de assinatura de acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Dessa vez foi Olivier Leducq, CEO do grupo sucroenergético francês Tereos, dono da marca de açúcar Guarani, que se manifestou pelas redes sociais. Ele disse que o tratado vai criar uma situação de “concorrência desleal” entre os produtos agrícolas europeus e sul-americanos, favorecendo estes últimos.
“No momento em que os nossos cooperados estão concentrados na implementação de práticas de agricultura regenerativa, como nossas explorações agrícolas vão enfrentar a concorrência desleal de produtos importados que não respeitam os mesmos padrões ambientais e sociais? Felizmente, a mobilização dos agricultores franceses e europeus durante o encontro de cúpula (G20) foi forte e continua a ser!”, escreveu Leducq no Linkedin.
Dizendo se opor firmemente à assinatura do acordo da maneira como está delineado hoje, Leducq conclamou os dirigentes franceses a reunir outros estados-membros na batalha para vetar o tratado.
“Não faz sentido brandir cláusulas-espelho como garantia de proteção: elas são inaplicáveis. A produção agrícola francesa deve ser capaz de permanecer competitiva face aos atuais desafios agronômicos e ambientais, ao mesmo tempo que implementa gradualmente as bases da agricultura de baixo carbono. O acordo UE-Mercosul, tal como está hoje, colocaria em risco essa ambição. Juntamente com os nossos cooperados e os setores agrícolas franceses, digamos não a um acordo que sacrificaria o futuro dos nossos agricultores e de nossos territórios!”, sublinhou.
CEO da Tereos tentou se explicar
A postagem do executivo francês recebeu uma enxurrada de comentários diversos, de franceses elogiando a iniciativa e de brasileiros questionando a veracidade das alegações. Alexandre Leite, diretor-executivo e cofundador de uma startup com sede no Reino Unido, a NaturAll Carbon, reclamou que Leducq estava sendo injusto com a agricultura brasileira.
“Sua empresa está nessa indústria no Brasil há décadas e é uma das maiores produtoras de lá. Você conhece muito bem os mais altos padrões ambientais e sociais implantados não apenas no açúcar e no etanol, mas também na agricultura brasileira em geral. Empresas que veem isso de forma diferente não devem operar no Mercosul. O veto da França ao acordo UE-Mercosul está levando os consumidores brasileiros a começar a boicotar produtos e empresas francesas lá. Isso não vai ser bom para ninguém”, sublinhou Leite.
O comentário do brasileiro foi o único que rendeu uma réplica de Leducq, que se justificou. “É importante esclarecer que as preocupações expressas neste post não são sobre a qualidade da agricultura brasileira. Mas sobre a disparidade nos padrões ambientais e sociais entre os países da UE e do Mercosul, incluindo o Brasil. Embora a agricultura brasileira cumpra com suas regulamentações locais, elas não estão alinhadas com as normas exigentes e custosas exigidas para a agricultura da UE e da França”, argumentou.
Tereos está entre as maiores usinas sucroenergéticas do Brasil
A Tereos é uma cooperativa fundada no norte da França em 1932, que atualmente conta com 12 mil agricultores associados. Chegou ao Brasil em 2000 e hoje está entre as cinco maiores empresas sucroenergéticas do país. Esmagou 21,1 milhões de toneladas de açúcar na safra 2023/24, com receita líquida de R$ 6,7 bilhões. O lucro operacional foi de R$ 1,3 bilhão, um crescimento de 120% em relação ao segundo melhor ano da história da empresa, na safra 2020/21. O lucro líquido no último ciclo de operações no Brasil foi de R$ 719 milhões.
Curiosamente, ao divulgar esses resultados, o grupo francês destacou a sustentabilidade de suas operações no Brasil. Afirmou que 100% da cana própria tem certificação de desmatamento zero, assim como um terço da cana que processa de terceiros.
Com as críticas disparadas pelo CEO da Tereos no fim de semana, em menos de um mês já são quatro grandes multinacionais francesas que atacaram a sustentabilidade do agronegócio brasileiro, apesar de terem operações significativas no país. Começou com a Danone, gigante de laticínios, cujo CEO declarou que já não comprava qualquer soja do Brasil, por não atender aos padrões de sustentabilidade ambiental. Após a reação dos brasileiros pregando boicote aos produtos da Danone, a direção da companhia na Europa recuou e desmentiu seu CEO, dizendo que não há veto à soja brasileira, em nenhum lugar do mundo.
Carrefour e Tereos não calcularam impacto das críticas
A artilharia francesa, contudo, continuou mirando o bloco sul-americano. Quando a poeira parecia baixar em relação à Danone, foi o CEO do Carrefour que reacendeu a polêmica. Alexandre Bompard divulgou uma nota afirmando que suas lojas não iriam mais vender carne do Mercosul. Na prática, uma jogada para a torcida francesa, visto que as exportações de carne brasileira para a França são quase insignificantes, atingindo apenas 0,002% dos volumes embarcados.
O boicote lançado pelo Carrefour foi prontamente copiado por outra rede de supermercados francesa, a Les Mousquetaires. Ela é dona das marcas Intermaché e Netto, que não operam no Brasil.
Parece, contudo, que os franceses não calcularam adequadamente o impacto que esses ataques teriam na opinião pública e nos parceiros comerciais brasileiros. Às vésperas da Black Friday e da intensificação das compras de fim de ano, as unidades brasileiras do Carrefour enfrentam um “boicote do boicote” e correm risco de não ter carne para colocar nas gôndolas nos próximos dias.
Carrefour lamenta impacto aos clientes
Os principais frigoríficos do país, como JBS, Marfrig e Masterboi, decidiram não entregar carne à rede até que o CEO francês ou a alta cúpula europeia do Carrefour se retrate. O movimento teve o apoio do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que teria ligado para dirigentes dos frigoríficos conclamando à retaliação. A Federação de Hotéis, Bares e Restaurantes de São Paulo (Fhoresp) se uniu ao boicote. Em novo desdobramento, Fávaro afirmou que vários abatedouros de frango também decidiram suspender as entregas ao Carrefour.
Em nota enviada à Gazeta do Povo, o grupo Carrefour Brasil disse “lamentar profundamente a atual situação”. Apesar de salientar que ainda não há falta de carne nas lojas do grupo, a empresa antevê essa possibilidade. “Infelizmente, a decisão pela suspensão do fornecimento de carne impacta nossos clientes, especialmente aqueles que confiam em nós para abastecer suas casas com produtos de qualidade e responsabilidade”, diz a nota.
“Há 50 anos temos construído e mantido uma excelente relação com nossos parceiros e fornecedores, pautada pela confiança mútua. Por isso, estamos em diálogo constante na busca de soluções que viabilizem a retomada do abastecimento de carne nas nossas lojas o mais rápido possível, respeitando os compromissos que temos com nossos mais de 130 mil colaboradores e com milhões de clientes em todo o Brasil”, segue a nota.
“Reiteramos nosso compromisso com o país, o respeito ao consumidor e a transparência em todas as etapas deste processo. Seguiremos trabalhando para resolver essa situação da melhor forma possível, sempre com o objetivo de atender com qualidade e excelência aos nossos clientes”, conclui o comunicado do Carrefour.
Grupo Tereos fala em “diferenças regulatórias” e nega ataque ao Brasil
Contatado pela Gazeta do Povo, o grupo Tereos no Brasil também enviou nota de esclarecimento, em que enfatiza que a declaração do CEO global sobre o acordo União Europeia-Mercosul “se refere exclusivamente à necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre as diferenças regulatórias que impactam a competitividade econômica entre os dois blocos comerciais”. “Sob nenhuma hipótese trata-se de um questionamento à qualidade dos produtos ou comprometimento do Brasil e do Mercosul com práticas sustentáveis”, diz o comunicado.
Na nota, a direção do grupo no Brasil vai em linha contrária à do dirigente francês, que criticou a sustentabilidade da produção. “Mais de 60% de sua produção total no país é exportada, respaldada por rigorosas certificações internacionais de qualidade e sustentabilidade socioambiental”, conclui a nota.
Para o ex-ministro da Agricultura Antonio Cabrera, a polêmica iniciada pelos executivos franceses faz parte de “um imperialismo regulatório da União Europeia, em que Bruxelas se vê como um exportador de regras para terceiros países – como os legisladores do mundo”.
“O que mais impressiona nessa declaração irresponsável é que a Tereos tem operações no Brasil e conhece o Código Florestal que o agricultor brasileiro precisa cumprir. (…) Um mercado genuinamente competitivo continua sendo a melhor restrição às grandes empresas, mesmo em nossa era de guerra cultural ou tempos de lacração. Nesse caso, vamos boicotar os produtos da Tereos no Brasil (como o Açúcar Guarani) até que que o senhor Leducq se retrate dessa difamação que fez contra o agro brasileiro”, prega o ex-ministro.