Movimentos antimanicomiais do Distrito Federal denunciam que, mesmo depois de 15 dias da morte de paciente no Hospital São Vicente de Paulo (HSPV), nenhuma providência foi tomada na gestão da unidade. Com isso, reivindicam o fechamento da porta de entrada da unidade, isto é, o Pronto Socorro, e a imediata substituição da direção do Hospital.
O Fórum Revolucionário Antimanicomial do DF publicou, nesta segunda-feira (6), uma carta aberta que aponta que, após nova diligência, foi observado que a rotina do hospital permanece inalterada, e que as contenções mecânicas e químicas permanecem a principal estratégia para tratar os pacientes. “Assim, fica evidente que a atual gestão do HSPV não consegue atender à necessidade urgente de revisão do seu fluxo e dinâmica, evitando novos casos como o de Raquel”, diz a carta.
O debate acerca do fechamento e troca de gestão do HSPV tomou forças após Raquel Franca de Andrade, de 24 anos, ser encontrada morta na noite do dia 25 de dezembro de 2024. Segundo informações às quais o Brasil de Fato DF teve acesso, Raquel era paciente psiquiátrica que residia no Hospital desde 2023.
O professor da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Grupo Saúde Mental e Militância no DF, Pedro Costa, conta que a troca da direção do São Vicente pode garantir um procedimento de apuração mais imparcial. “A gente entende que, enquanto essa equipe de direção estiver lá, não vamos ter processos mais imparciais possíveis de condução das investigações e tudo aquilo que envolve o caso. Então, exigimos troca imediata da gestão”, destaca.
Questionada sobre as medidas tomadas pela gestão do Hospital até o momento em relação à morte de Raquel, a Secretária de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) não respondeu até o fechamento da reportagem. O espaço segue aberto para atualizações.
Contradições
Durante reunião de deliberação sobre a diligência realizada no Hospital, na qual o Brasil de Fato DF também teve acesso, foram discutidas contradições da direção do HSPV em relação à morte de Raquel. Na ocasião, foi destacado que o protocolo de diligências clínicas não foi seguido corretamente.
O prontuário médico aponta que, no dia 25 de dezembro, às 19h29, Raquel Franca de Andrade, apresentou uma “crise convulsiva, simulando??”. A suposta simulação foi avaliada pela plantonista do hospital, que informou, no documento, que aplicou medicação de acordo com a prescrição médica da paciente.
“Raquel tinha histórico de crises convulsivas, tomava medicação controlada para essas crises. Porém, a equipe achava que era crise conversiva, tipo simulação. Que ela estava inventando as crises pra chamar atenção. Por isso às vezes ignoravam”, informa trecho de uma mensagem de Whatsapp ao qual o BdF DF teve acesso.
Ainda conforme as informações, Raquel apresentou crise convulsiva na noite do dia 24 de dezembro e foi contida mecanicamente (amarrada à maca). Conforme a denúncia, a paciente também teria sofrido uma queda, mas não recebeu o tratamento adequado.
Uma portaria que institui normas e fluxos assistenciais para as Urgências e Emergências em Saúde Mental no âmbito do Distrito Federal – Portaria 536, de 2018 – indica que os usuários que apresentem intercorrências clínicas no HSVP deverão ser referenciados, prioritariamente, para a Unidade de Medicina de Emergência do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), o que não ocorreu no caso de Raquel.
“No prontuário diz que ela estava agitada dia 24, aí fizeram contenção física dela, deixaram amarrada até dia 25 de manhã. O que pode ter piorado o quadro dela também. Aí ela teve convulsão dia 25, deram remédio e não monitoraram. Tinham que ter levado ela pro hospital ou deixado na sala de observação junto com a equipe”, diz outro trecho da mensagem.
Contenção mecânica e funcionamento ilegal
Em agosto deste ano, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), lançou na Câmara dos Deputados, em Brasília, um relatório de inspeção realizada no Hospital São Vicente de Paulo, o documento avalia a necessidade de fechamento do local.
O relatório apontou que o Hospital opera ilegalmente há quase 30 anos, utilizando práticas manicomiais baseadas na medicalização e no uso de contenções mecânicas como método disciplinar, isto é, a imobilização através da força física. Método utilizado em Raquel Franca de Andrade, conforme relato da denúncia. Além disso, os pacientes do HSVP são submetidos a uma série de violações, como o impedimento de acesso à mídia e aos meios de comunicação, internações prolongadas.
O modelo de organização e as práticas adotadas pelo HSVP, explicitadas no relatório do MNPCT, contradizem o que é preconizado pela Reforma Psiquiátrica. Instituída oficialmente pela lei 10.216 de 2001, essa política surge para humanizar o tratamento de pessoas com transtornos mentais e integrá-las à sociedade. Uma das principais diretrizes da Reforma é a desinstitucionalização e o fechamento de manicômios e hospícios.
Uma das normas contrariadas com a continuidade do funcionamento do HSVP é a lei distrital nº 975/95. Promulgado em 1995, o texto previa a “redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados”, que deveriam ser extintos em um prazo de quatro anos, ou seja, até 1999. Há um atraso de mais de 24 anos no cumprimento da norma.
O que acontece se fechar a porta de entrada do HSPV?
Com a reivindicação do fechamento da porta de entrada do São Vicente de Paulo, militantes argumentam que é necessário fortalecer outros serviços de atendimento à saúde.
A Lei da Reforma Psiquiátrica define que a pessoa deve ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e que a internação só seja considerada caso todos os recursos extra-hospitalares sejam insuficientes. Já a Lei Orgânica do DF (LODF) preconiza que as emergências psiquiátricas deverão compor as emergências dos hospitais gerais.
Pedro Costa avalia que, em um processo de fechamento do São Vicente de Paulo, o intuito é a retirada das pessoas que estão em manicomializadas no hospital e que estão internadas, mas o processo está vinculado a um plano de fechamento.
“Estamos contribuindo como Fórum e movimento social para um plano que implica na ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no fortalecimento dos leitos de hospitais gerais, dos CAPS do tipo III e na criação das Residências Terapêuticas. Tudo isso é para que evitar que outras pessoas sejam internadas no São Vicente de Paulo, e que inclusive correm o risco de sofrerem o que aconteceu com a Raquel”, explica o professor da UnB.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Márcia Silva