A charada chinesa – 24/03/2023 – Demétrio Magnoli


Lula não vai à China por causa da Ucrânia, mas para reposicionar o Brasil num mundo muito diferente –mais complexo, perigoso e hobbesiano– que aquele de duas décadas atrás, na inauguração de seu primeiro mandato. A guerra na Ucrânia, porém, paira sobre as conversas que manterá com Xi Jinping. O desenlace do conflito redefinirá os contornos da ordem mundial. E a postura do governo Lula na busca de uma solução negociada determinará o sucesso ou o fracasso da política externa brasileira.

Quais são os interesses da China no conflito que se desenrola em terras ucranianas? Eis a charada que nossos diplomatas-chefes –Celso Amorim e Mauro Vieira– precisam decifrar antes de assinar um comunicado conjunto com Xi Jinping.

No início, Lula atribuiu a Putin e Zelenski responsabilidade compartilhada pela guerra (“quando um não quer, dois não brigam”) e, reproduzindo alegações do Kremlin, enxergou na invasão russa motivações de segurança ligadas à expansão da Otan. A “neutralidade pró-russa” ensaiada pelo Brasil adapta-se ao plano de paz apresentado por Xi Jinping.

A China declara-se “imparcial” diante da guerra. Tradução: no conflito, não distingue o agressor do agredido, a nação invasora da nação invadida. Por isso, absteve-se na votação da resolução da ONU de condenação da invasão. Seu plano de paz menciona o respeito à “soberania” sem explicitar qual soberania foi violada, abrindo espaço para a interpretação putinista de que os territórios ucranianos ilegalmente anexados pertencem à Rússia. O plano clama por um cessar-fogo seguido de negociações, o que congelaria a ocupação militar russa de um quinto da Ucrânia. A “imparcialidade” tem lado.

Analistas distraídos imaginam que interessa à China o prolongamento da guerra, a fim de tensionar a unidade entre os aliados da Otan. Esquecem-se da relevância do mercado europeu para a economia chinesa: quanto mais longo o conflito, mais a Europa se desconectará da potência que oferece amparo à aventura imperial russa. Xi Jinping quer a paz –mas não a qualquer preço.

A China é agnóstica diante da soberania ucraniana e, em geral, dos princípios da Carta da ONU que proíbem a anexação de territórios pela força. Xi Jinping não se importa pelos temas da sobrevivência da Ucrânia como nação independente ou do traçado de suas fronteiras. Tudo que lhe interessa é evitar a queda do regime de Putin, consequência quase certa de um colapso militar russo.

O triângulo EUA-China-Rússia assume sua terceira configuração histórica. Até o cisma sino-soviético concluído em 1969, a China figurou como aliado secundário da URSS. Depois, a partir de 1971, tornou-se o parceiro menor dos EUA, isolando a URSS na ordem bipolar da Guerra Fria. Hoje, reconstituiu-se a aliança original sino-soviética, mas com hierarquias invertidas. No confronto estratégico com os EUA, a China conta com o suporte de uma Rússia que ocupa a posição de parceiro menor.

Salvar Putin de seu cálculo desastrado, impedindo o isolamento da China –é esta a missão de Xi Jinping. O regime chinês empenha-se no resgate econômico da Rússia e, com seu plano de paz, busca uma saída vitoriosa para a invasão deflagrada pelo chefe do Kremlin. Lula não tem o direito de envolver o Brasil na legitimação de uma guerra de conquista.

A postura brasileira evoluiu desde as declarações pusilânimes de Lula: o Brasil votou na resolução da ONU que exige a imediata retirada das forças russas. É, porém, uma evolução agônica, sujeita a retrocessos: continuamos a criticar a ajuda militar à nação invadida e Mauro Vieira chegou a sugerir uma “paz” com cessão ucraniana do Donbass. Nesse passo, basta um desvio para engajar o Brasil na operação chinesa, reduzindo nossa política externa à condição de refém da guerra de um ditador com ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional.


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