Neto, 37, nasceu no Rio de Janeiro, mas escolheu Chapecó para viver e criar os filhos. Ele está ligado de forma indelével ao time da cidade, a Chapecoense. Foi onde viveu os melhores momentos da sua carreira. Era a camisa que defendia quando quase morreu.
Um dos três integrantes do elenco que sobreviveram ao desastre aéreo de novembro de 2016, o zagueiro nunca mais jogou futebol, mas continuou a morar no município. Uma decisão que ele começou a reconsiderar.
“Algumas coisas me fazem pensar no futuro. Já fui xingado em rede social por torcedor dizendo para eu ir embora de Chapecó. Sinto que pessoas de dentro [do clube] me tratam como se eu fosse um estrangeiro. Moro em Chapecó, tenho investimentos. Construí minha casa aqui. Gosto demais. É a cidade que escolhi para criar meus filhos, mas eles têm 16 anos e percebem o que está acontecendo, escutam radialistas acusarem as viúvas. Mesmo pós-tragédia, ouvi falarem que as vítimas e as famílias queriam muito dinheiro. É triste ver isso acontecer”, desabafa.
Um dos comentários que ouviu e que mais o machucou foi que não conseguiu voltar a jogar por “problemas de cabeça”. Como resultado da queda do avião da LaMia que levava a Chapecoense a Medellín para a final da Copa Sul-Americana de 2016, ele sofreu fratura na coluna cervical, lesões no joelho e passou por múltiplas cirurgias reparadoras na mão, nariz e crânio.
Foram 71 mortos na tragédia.
“Eu tenho um parafuso cervical dentro do osso. Há pessoas chamando as vítimas do acidente, as viúvas, de mercenários”, constata.
Neto é um dos dez sobreviventes ou familiares de vítimas da tragédia que questionam a aprovação do plano de recuperação judicial do clube. A assembleia aconteceu no início deste mês e, para advogado das vítimas, foi irregular.
“A gente vai impugnar essa assembleia por uma série de fatores jurídicos. Obviamente que a gente não concorda com isso. Quem vendeu uma caixa de Yakult e não recebeu e quem perdeu a vida está no mesmo balaio. É um processo jurídico injusto”, afirma Marcel Camilo, advogado de Neto e de outras viúvas de vítimas da queda do avião.
A agremiação entrou em recuperação judicial em fevereiro de 2022 porque não conseguia mais pagar suas dívidas, avaliada em mais de R$ 100 milhões.
Em 14 de junho de 2020, a Chapecoense assinou documento comprometendo-se a quitar 26 ações contra o clube abertas por familiares das vítimas. A agremiação deu como garantia de pagamento sua verba de sócio-torcedor. O acordo foi firmado na secretaria de execução do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina.
Pelos primeiros 12 meses, seriam destinados R$ 250 mil por mês às famílias. Do 13º ao 24º mês, o valor passaria a ser de R$ 350 mil. Depois disso, voltaria a ser R$ 250 mil. O dinheiro seria repassado pela própria Chapecoense.
Com o tempo, sete casos tiveram a indenização quitada e foram encerrados. Sobraram 17. Em dezembro de 2021, uma família não recebeu a parcela. A partir de janeiro de 2022, ninguém foi pago.
No plano de recuperação, a Chapecoense pediu desconto de até 85% para pagar as dívidas que tem com as famílias das 71 vítimas da tragédia. Hoje em dia o valor está em cerca de R$ 40 milhões. Propôs que os depósitos sejam feitos ao longo de 13 anos. A equipe deixou de pagar as indenizações. Em resposta, os familiares pediram que imagens dos atletas fossem retiradas do site e dos imóveis da instituição.
Segundo Camilo, a assembleia foi irregular porque pessoas que não estavam documentadas receberam links para acompanhar a reunião online. Empresas com créditos não afetados pela recuperação judicial tiveram direito a voto.
A Chapecoense afirmou, em nota, que “todos os trâmites ocorreram de forma regular e em conformidade com o que preceitua a lei específica no intuito da recuperação judicial, sendo juridicamente perfeita”.
“Somente tiveram direito a voto credores arrolados no rol de credores da recuperação judicial e, portanto autorizados a isso. Não se pode afirmar nada acerca da necessidade financeira de qualquer credor, mas, inegavelmente, todos os direitos eram legítimos e foram auditados pela administração judicial”, diz o clube.
“Minha maior tristeza é a recuperação judicial colocar outros credores e as famílias no mesmo pacote. Não são famílias apenas de atletas, Isso é o que me machuca mais, comparar aqueles que fizeram sucesso e levaram o nome da Chapecoense para o mundo como se fôssemos pessoas quaisquer. Como se a gente fosse culpado pela dívida do clube”, completa Neto.
Neto, Susi Ribas, viúva do zagueiro Willian Thiego, e Dhayane alaoro, filha do presidente Sandro Palaoro, também morto no acidente, afirmam terem escutado comentários de pessoas em Chapecó e em rádios da cidade que as indenizações e acordos trabalhistas feitos com as vítimas são responsáveis pela situação financeira da Chapecoense.
“Eu nunca recebi nada. Nem acordo nem processo trabalhista. Ver pessoas jogarem toda a culpa em nós sobre a situação que o clube está hoje… Isso não é verdade. A culpa disso tudo é da má gestão. Meu marido morreu trabalhando. Eu sempre trabalhei e continuo trabalhado. Trabalho para sustentar minha filha, sendo que ela poderia usufruir do que o pai deixou para ela”, queixa-se Susi.
“Muitos familiares de dirigentes foram escanteados, deixados de lado, como se não existissem. As pessoas que frequentavam nossa casa, que eram amigas dos nossos pais, passaram a ignorar a nossa existência. Já vi gente atravessar a rua para não ter de conversar com a gente. Como se fôssemos causar incômodo a essas pessoas. Foi o pior lado de conhecer as pessoas nesse pós-tragédia. Foi horrível ter essas decepções”, completa Dhayane.
A atual administração da Chapecoense afirma que “em hipótese e em momento algum houve qualquer tipo de afirmação difamatória ou caluniosa, envolvendo membros do seu quadro diretivo, sobre a situação financeira do clube e qualquer relação com familiares das vítimas”.
“Tais afirmações que, no entendimento do clube, são desconexas da realidade, fora ditas e ganharam repercussão através de um membro da imprensa que não possui nenhum vínculo ou relação com a Chapecoense”, completa a agremiação.