O deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) é o único indiciado com mandato no inquérito do suposto golpe de Estado e, por isso, seria o único com foro privilegiado entre os investigados até agora. Esse fato gerou questionamentos entre juristas e advogados sobre a competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar todos os demais indiciados, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Por outro lado, há quem defenda que o tema deve seguir na Suprema Corte por ter relação com outros inquéritos que tramitam lá e por se tratar de tema constitucional e de um caso que ocorreu quando outros investigados tinham foro privilegiado.
Ramagem, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), é citado mais de 50 vezes no relatório da Polícia Federal (PF), que está sob análise da Procuradoria-Geral da República (PGR). A PF o acusa de ter usado a Abin para produzir documentos para “subsidiar” Bolsonaro com “informações falsas”, especialmente sobre urnas eletrônicas.
Ramagem nega que tenha praticado qualquer crime e diz que as acusações são “narrativas”. “Criminalizam quem age dentro da lei. Já abusos se tornaram parte do sistema”, publicou em suas redes sociais.
O advogado especialista em Direito Penal André Marsiglia avalia que, neste momento, o indiciamento do deputado é o que está justificando a competência do STF para o caso e potencialmente atraindo os demais investigados para um julgamento na Corte Superior – o que, em sua opinião, seria questionável. Ele salienta que inicialmente é preciso analisar se há consistência no indiciamento de Ramagem no plano de golpe e averiguar se há provas do seu envolvimento com os demais. Para o advogado, se Ramagem não for denunciado pela PGR, o caso não poderia tramitar no STF e deveria ser remetido à Justiça em primeira instância.
“E se a PGR entender que Ramagem não deva ser processado? Cai por terra quem está atraindo o caso para o STF. Se ele for denunciado, há uma corrente no STF que entende que, havendo um com prerrogativa, os demais ficam atraídos à competência da Suprema Corte. Mas os fatos que ligam essa pessoa precisam ter uma conexão com todos os demais”, explica.
O advogado Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP, também avalia que a tramitação do inquérito deveria iniciar na primeira instância.
“Infelizmente houve essa evocação pelo STF [do inquérito], mas o normal seria o processo correr na primeira instância e depois, em havendo recursos, subir às instâncias superiores se houvesse a discussão de alguma questão realmente constitucional”. Chiarottino reitera que o STF é um tribunal para julgar questões constitucionais, mas que “não tem se comportado como tal”.
Ele avalia que o STF evocou para si uma série de inquéritos sob a alegação de que os fatos têm conexão, o que é questionável em sua avaliação. “O STF, pelo seu regimento, só pode abrir inquéritos sobre fatos ocorridos dentro do recinto do STF. Não é o caso e estamos vendo mais uma criatividade jurídica que não poderia ser utilizada porque teria as regras do processo que estabelecem, por exemplo, o juiz natural. Além de legais, são regras constitucionais. O STF não poderia conduzir as coisas dessa maneira”.
Marsiglia menciona a possibilidade de Ramagem ter sido incluído no inquérito para reforçar a competência do STF. “A justificativa dos ministros para manter o caso no STF deve explorar que essa conspiração foi alimentada pelas redes sociais e, portanto, tem a ver com o inquérito das Milícias Digitais e do 8 de Janeiro. Acredito que Ramagem seja uma segunda justificativa para manter o caso com a Corte”.
Outro ponto levantado é o fato de Ramagem atrair competência ao STF para julgar o suposto golpe, mas não daria competência automática à relatoria de Alexandre de Moraes. “O deputado tem foro privilegiado, mas isso não significa que o Moraes deveria ser o relator”, avalia.
Advogados ponderam que investigados tinham foro privilegiado anteriormente
Por outro lado, há juristas que defendem que o caso do suposto golpe deve permanecer com o STF. Acacio Miranda, advogado especialista em Direito Constitucional, diz ser mais fácil justificar a permanência do inquérito sobre o suposto golpe com a Suprema Corte do que o inquérito das “fake news”, que ficou conhecido como “inquérito do fim do mundo”. Na avaliação dele, o relatório da PF indicia pessoas que, à época dos fatos, eram autoridades detentoras do foro por prerrogativa de função, o foro privilegiado. “Nestes casos a competência é do Supremo. Neste inquérito em específico, é difícil a gente contraditar esse posicionamento da competência”.
O advogado explica que a determinação da competência se dá quando há a abertura do processo e, mesmo que a PGR não ofereça denúncia contra Ramagem, o caso deverá permanecer no STF porque isso já se estabeleceu no início das investigações. “Se não oferecerem denúncia contra o Ramagem, o inquérito vai continuar tramitando no Supremo em relação aos demais investigados”.
“Além da tentativa de golpe de Estado, há um atentado contra as instituições democráticas e como a instituição atacada é o Supremo. Nesse contexto, se justifica a competência estar no Supremo também”, continua.
O especialista em Direito Penal, procurador-jurídico da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim), Márcio Berti, também diz que o inquérito do suposto golpe deve seguir no STF, independentemente de ter ou não um indiciado com prerrogativa de função. Ele avalia a relação do inquérito do suposto golpe de Estado com os inquéritos 4.828, das Milícias Digitais, e com o 4.781, dos Atos Antidemocráticos, ambos sob a relatoria de Moraes.
O advogado avalia que, se houve envolvimento de agentes públicos exercendo funções no governo à época dos fatos, a competência não necessariamente seria de um juiz de primeira instância, mesmo que os envolvidos não estejam mais no poder. “Isso ocorre porque a função pública desempenhada é relevante para determinar a competência, especialmente se os atos praticados decorreram do exercício dessas funções ou envolveram bens, serviços e interesses da União”.
Para Berti, um golpe de Estado, mesmo que planejado ou tentado, não é um crime comum e atenta diretamente contra a ordem democrática e constitucional, matéria essencialmente ligada à Constituição Federal. Ele cita que o artigo 102 da Constituição atribui ao STF a competência para julgar, de forma originária, ações penais que envolvam crimes políticos. “Logo, uma tentativa de golpe pode ser considerada matéria diretamente ligada à Constituição, justificando a competência do STF”, descreve.
O que diz a Constituição sobre as competências para investigar golpe de Estado
A Constituição Federal de 1988 não fala explicitamente que o STF tem a competência para investigar crimes contra o Estado Democrático de Direito, mas na avaliação de especialistas que dizem ser correta a tramitação na Corte, os ministros podem desempenhar papel investigativo em situações consideradas excepcionais, com base em princípios constitucionais e no seu papel como guardiã da Constituição.
Entre os fundamentos jurídicos estaria a competência para processar e julgar autoridades com prerrogativa de foro elencada no Artigo 102, lembra o advogado Acacio Miranda. O inciso I estabelece que o STF tem competência originária para processar e julgar, nos crimes comuns e de responsabilidade, o presidente da República, o vice-presidente, membros do Congresso Nacional, ministros de Estado e do STF, entre outras autoridades.
Como a Constituição não menciona diretamente a possibilidade de o STF conduzir investigações contra o Estado Democrático de Direito, ministros têm se utilizado da Teoria dos Poderes Implícitos como fundamento. Essa teoria permite que o Supremo tome medidas que julgue necessárias para garantir funções constitucionais, incluindo investigações de ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Foi com base nessa interpretação que o STF instaurou o inquérito 4.781, das fake news, em 2019. A justificativa estava pautada no artigo 43 do regimento interno do STF, que permite ao tribunal instaurar investigações para apurar crimes que ocorram em suas dependências ou que atentem contra sua integridade institucional. Segundo Márcio Berti, esse entendimento gera controvérsia, mas tem sido mantido pela Corte.
O advogado André Marsiglia, que afirma que o tema não deve seguir no STF, diz se tratar de manobras jurídicas para manter sob seu guarda-chuva temas que não deveriam ser julgados na Corte. Ele argumenta que as justificativas citadas, como a relações entre inquéritos, demandaria primeiro uma investigação.
“Não pode ser pressuposta, esses inquéritos deveriam tramitar, de início, na primeira instância até que essa conclusão fosse feita. Para entender que esses inquéritos se conectam é preciso uma investigação que, ao que vimos até agora, não foi concluída”.
O que fez Ramagem no suposto planejamento do golpe de Estado, segundo a PF
A PF acusa Ramagem de usar seu cargo como chefe da Abin para solicitar, receber e elaborar documentos que “atacavam o sistema eleitoral”, “municiando” o então presidente Jair Bolsonaro com “estratégias de ataques às instituições democráticas” e às urnas eletrônicas.
O deputado também teria sugerido que Bolsonaro utilizasse a Advocacia-Geral da União (AGU) para publicar pareceres que dariam respaldo para que a PF não tivesse que cumprir decisões judiciais do STF, principalmente as contrárias a aliados políticos. “A estratégia discutida visava confrontar as decisões judiciais emanadas pelo STF que pudessem atingir os interesses de Jair Bolsonaro”, diz trecho do relatório.
“Os elementos probatórios encontrados comprovam que Alexandre Ramagem, na condição de diretor-Geral da Abin, utilizou-se do cargo para determinar a produção de relatórios ilícitos que pudessem reunir dados de interesse da organização criminosa com o fim de atacar o sistema eleitoral brasileiro”, alertam os investigadores.
Da tribuna da Câmara dos Deputados na terça-feira (28), Ramagem defendeu Bolsonaro sobre o suposto planejamento de golpe e se defendeu das acusações. Disse que Bolsonaro sempre “jogou dentro das quatro linhas”, uma referência comum ao ex-presidente ao dizer que não agiu fora do que prevê a Constituição Federal. “Bolsonaro não aceitou, não quis e não deixou fazer nada contra a alternância [do poder], está muito claro isso, não há crimes”.
Disse se tratarem de narrativas para perseguição política e que quem está cometendo irregularidades e abusos é o judiciário, sem mencionar o nome de Moraes. Também criticou o Senado Federal. “O erro está em quem deveria controlar e não controla, a presidência do Senador Federal (…) no estado democrático, a instância maior é o parlamento”.
O deputado denunciou permissões para invasões de competência nas atribuições do legislativo e quebras de imunidade parlamentar. “[Há] quebra do sistema acusatório, com um juiz que está como vítima, investigador, acusador, julgador, um absurdo, quebra do juiz natural, quebra da presunção de inocência”, disse ao criticar investigações que, segundo ele, são sigilosas para os investigados, mas não para a imprensa.