A expressão “lugar de fala” tornou-se quase um jargão, mas ela é de fato apropriada para mostrar o quanto esse lugar pode não pertencer a quem tenta falar —e legislar— por quem ali está. As agruras que as mulheres enfrentam para praticar uma simples corrida, de questões ligadas à segurança pessoal à impossibilidade de contar com um bom absorvente íntimo, simplesmente me escapam. (Eu = homem branco + feições galegas + altura acima da média + apenas um ano de escola pública).
Por isso decidi abrir este espaço, após quase cinquenta (que me parecem oitocentas) colunas escritas desde abril, para a estudante de medicina Isabela Schultz, 20 anos, amiga de minha filha Vitória, que, se ainda não corre, não disfarça sua felicidade quando algum jabaculê de uma marca esportiva aterrissa em casa.
Sem mais delongas.
“Minha trajetória na corrida começou durante a pandemia, aos 16 anos, quando todas as academias estavam fechadas e correr era uma das poucas atividades físicas seguras para praticar. Eu vinha do polo aquático e treinar estava na minha rotina, mas no começo foi bem despretensioso. As distâncias eram curtas e eu não tinha acompanhamento.
Foi apenas recentemente que eu incorporei de verdade a corrida à minha vida. Assinei uma assessoria, comecei a seguir uma planilha e criei objetivos. Acho que devo isso, ou parte disso, a esse ‘boom’ de influenciadores que, querendo ou não, impacta muito a minha geração.
Correr durante a pandemia preocupava meus pais, já que a cidade vivia deserta e todo dia havia relatos de assaltos. Com o tempo, aprendi que mulheres demandam cuidados especiais para correr. Deve ser diferente para os homens. Por sermos ‘alvos fáceis’, horário, roupa e trajeto são coisas a ser pensadas com cuidado.
É chato ter de tomar precauções para exercer uma atividade prazerosa, e acredito que posso falar por quase todas nós mulheres que correr à noite é sempre algo a se evitar —eis aí a razão de existência da esteira. Outra experiência frustrante que tive foi querer correr durante uma viagem e ter de planejar e pesquisar sobre o trajeto milimetricamente.
Mas todas essas preocupações parecem irrelevantes quando, e isso acontece direto, algum homem grita pela janela do carro, fica me encarando ou começa a me seguir.
Ainda há que se conciliar o ciclo hormonal. Não é incomum que cólicas muito fortes ou indisposições me afastem, como diz o Paulo, do cascalho. Além disso, é dureza encontrar um absorvente que aguente as corridas mais longas sem que seja necessário fazer ajustes durante o treino.
Também por conta disso costumo fazer provas fora dos dias de ciclo. Mas se a vontade for grande, ‘vamo que vamo’.
Por fim: corridas só de mulheres têm aumentado bastante e faço a minha primeira neste domingo (1º), em São Paulo. Acho que é muito interessante a proposta de mulheres torcendo umas pelas outras, celebrando conquistas juntas e criando uma comunidade em que são compartilhadas frustrações semelhantes em relação ao esporte.
A corrida é, afinal, uma atividade individual e ter por perto pessoas que se motivam, se apoiam e se entendem torna a experiência de correr ainda melhor.”
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