Toda vez que um corredor morre durante a prática de atividade física, especialmente se seu último suspiro é durante uma prova, um caudal de estupefação, para dizer o mínimo, domina o verdadeiro universo paralelo que é o mundo da corrida.
Aconteceu no domingo, 10 de novembro, na Meia de Sampa, prova da Norte, empresa useira e vezeira em promover eventos com renúncia fiscal. Mas já ocorreu em 2016 numa Night Run (Norte, novamente) e, três anos depois, numa mara de Uberlândia, para ficar em apenas dois exemplos.
O “patrono” desse negócio macabro é, pode-se dizer, o escritor James Fixx, autor do seminal “Guia completo da corrida”, best-seller que ajudou a consolidar o boom da corrida no final do século 20 nos Estados Unidos.
No caso de Fixx, que tinha problemas cardíacos, ele foi vítima de ataque fulminante enquanto corria solitariamente, num treino.
A Norte já vinha sendo baleada por conta de atrasos e problemas com o percurso da Meia de Sampa, e a isso se somou ao infortúnio de Marcelo Mariano da Silva, que tinha 52 anos. A empresa demorou a se pronunciar oficialmente e, quando o fez, declinou horários de atendimento ao corredor, afirmando que a ambulância tardou 5 minutos para chegar ao local onde estava a vítima a partir do momento em que a organização foi contatada.
Também fez questão de dizer que Silva morreu no hospital para onde foi levado. Curiosamente o comunicado diz “não ser prudente” afirmar os “horários exatos” dos acontecimentos —declinados minuciosamente.
É de responsabilidade da empresa manter uma estrutura médica compatível com o evento e do poder público fiscalizá-la. Podem ocorrer ratas nas duas pontas, e eventos fatais talvez sirvam, desgraçadamente, para melhorar essas ações. Mas não é possível, sem investigação isenta, acusar este ou aquele.
Com tudo isso, fecho com o explorador, aventureiro e escritor Guilherme Cavallari, talvez o melhor autor de livros de viagem do Brasil, escola literária tão mal representada aqui. Para ele, “morrer faz parte do jogo”.
Guilherme não se refere a Silva, mas ao que costuma acontecer em seu cenário preferencial, a natureza. “Se o equipamento é ou não adequado; se o clima é ou não favorável, é preciso lembrar que todos esses e outros elementos fazem parte do jogo. No contato com a natureza, há riscos envolvidos”, disse-me quando morreu o corredor de aventura Gilbert Eric Welterlin no pico dos Marins, o mesmo que cinco anos depois serviria de cenário para a famosa presepada de Pablo Marçal.
Guilherme se opõe ainda mais enfaticamente ao que especialistas costumam nessas horas fúnebres chamar de “regra de ouro” —jamais subir a montanha sozinho.
“Me incomoda o argumento de que montanhismo é uma coisa muito perigosa, que só deve ser praticada por profissionais, e que há uma ‘regra de ouro’, a de que não se deve praticar um esporte de aventura sozinho. Considero-me especialista em esporte de aventura e desconheço essa regra. A atividade solitária pode ser fonte de grande prazer, de desafio, não vejo problema nenhum [em praticá-la solitariamente] desde que se aceite que morrer faz parte do jogo, de que se machucar faz parte do jogo.”
Na corrida de rua morrer também faz parte do jogo, e por isso a recomendação de se auscultar o corpo de tempos em tempos. Check-ups, testes de esteira, a parafernália toda.
(Não que eu, Cabo das Tormentas há muito vencido, faça isso, mas, adaptando o velho ditado, leia o que eu escrevo, não faça o que eu faço.)
E, enfim, não custa dizer que a inatividade mata muito mais do que a atividade física, além de tornar a vida muito mais limitada, e não só fisicamente falando.
Como já disse uma outra vez aqui, na dúvida, corra.
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