Dia 19 de novembro passa despercebido para a maioria das pessoas, mas, para outros, é um lembrete doloroso de uma realidade cotidiana
Não é surpreendente que milhões de pessoas convivam com a falta de algo tão essencial quanto um banheiro, mesmo hoje, em metrópoles e áreas rurais brasileiras. Seja chamada de privada, casinha, buraco ou qualquer outro nome, a prática de defecar a céu aberto ou em condições inaceitáveis é uma situação que escancara as desigualdades estruturais, a negligência histórica e a falta de compromisso político com a dignidade humana e os direitos básicos da população mais vulnerável.
O dia 19 de novembro passa despercebido para a maioria das pessoas, mas, para outros, é um lembrete doloroso de uma realidade cotidiana. O Dia Internacional do Banheiro, reconhecido pela ONU desde 2013, não celebra uma conquista, mas denuncia uma ausência. Ele nos lembra que, em nosso mundo, a despeito de toda a ciência e tecnologia existente, ainda há 3,6 bilhões de pessoas sem acesso a saneamento básico adequado (Progress on household drinking water, sanitation and hygiene 2000-2017: Special focus on inequalities). No Brasil, país de eternos contrastes profundos, essa realidade ganha contornos cruéis em comunidades invisibilizadas, aquelas que, apesar de existirem e contribuírem para a sociedade, permanecem excluídas de políticas públicas, direitos básicos e reconhecimento formal. Essas comunidades sofrem com a ausência de dados oficiais, estigmatização, negligência estrutural e falta de representatividade política, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão. É como se não existissem para os governos.
O relatório da TETO Brasil, em parceria com o Insper e a Diagonal, oferece um olhar sobre nove dessas comunidades no Estado de São Paulo: Verdinhas, Fazendinha, Porto de Areia, Benfica-Machado, Pedra Branca, Boca do Sapo, Comunidade da Paz, Capadócia e Tekoa Pyau. Essas áreas enfrentam condições críticas de saneamento, revelando não apenas a precariedade estrutural, mas a negligência histórica que as exclui das políticas públicas. Na Boca do Sapo, a ausência de infraestrutura básica força os moradores a conviverem com valas abertas como única alternativa para o escoamento de resíduos. Em Capadócia, as fossas rudimentares frequentemente transbordam, contaminando o solo e expondo a comunidade a doenças graves destacam que a exclusão dessas comunidades não é casual, mas sistemática (TETO, 2023).
Em Tekoa Pyau, uma aldeia indígena guarani, a TETO apoiou a implementação de soluções inovadoras para o local ao construir banheiros com sistemas de biodigestão que, ao gerar biogás, é utilizado no preparo de alimentos. A organização também financiou quatro pontos de vermidepuração, tecnologia biológica baseada em práticas tradicionais da Tekoa Pindo Mirim, onde minhocas são usadas para purificar a água do esgoto doméstico. Essas iniciativas não só melhoram o acesso ao saneamento, mas também incorporam práticas ambientalmente sustentáveis e respeitam a cultura local (TETO, 2023). Ou seja, soluções básicas e baratas existem. O que falta então: vontade dos governantes para solucionar a questão com as próprias comunidades envolvidas. Instituições de pesquisas e associações já vem desenvolvendo trabalhos sérios há décadas.
Os números revelam a gravidade do problema. Segundo o Censo 2022, 24,3% da população brasileira — ou 49 milhões de pessoas — utiliza métodos precários de esgotamento, como fossas rudimentares ou despejo de resíduos em rios e córregos. Além disso, 0,6% da população (1,2 milhão de brasileiros) vive sem qualquer tipo de banheiro ou sanitário. Em Verdinhas, 19% das famílias relataram episódios recorrentes de diarreia, enquanto em Fazendinha e Porto de Areia, 14% e 10% dos moradores, respectivamente, não têm acesso à água potável. A infraestrutura inadequada também é visível em Benfica-Machado, onde 72% das casas apresentam infiltrações e umidade, agravando os riscos à saúde (TETO, 2023; Censo 2022).
Além das consequências para a saúde pública, a falta de saneamento tem impactos sociais e econômicos devastadores. Mulheres e meninas enfrentam riscos desproporcionais. O relatório aponta que em áreas como Boca do Sapo, a busca por privacidade pode resultar em situações de assédio ou violência. A ausência de banheiros seguros também dificulta a frequência escolar de meninas, especialmente durante o período menstrual, perpetuando a desigualdade educacional e econômica. Trabalhadores informais, como vendedores ambulantes, têm sua produtividade reduzida, pois a falta de instalações básicas afeta sua dignidade e integração social e econômica.
O impacto ambiental é igualmente preocupante. O descarte inadequado de resíduos humanos polui fontes de água potável e degrada ecossistemas inteiros contaminando recursos hídricos e comprometendo a segurança alimentar, criando um ciclo vicioso de vulnerabilidade e pobreza. Para a população de rua, as condições são ainda mais severas, pois a ausência de banheiros públicos os força a defecar a céu aberto, agravando sua exclusão e gerando riscos à saúde.
Apesar da gravidade da situação, iniciativas locais e internacionais oferecem esperança. Na Namíbia, sistemas descentralizados de saneamento liderados por comunidades oferecem soluções de baixo custo em regiões sem redes públicas de esgoto. Em Nairóbi, no Quênia, parcerias entre organizações locais e empresas privadas implementaram sistemas de banheiros compartilhados e baseados em contêineres. Na África Oriental, modelos híbridos que combinam apoio estatal e iniciativas de mercado têm melhorado o acesso ao saneamento em áreas vulneráveis, mostrando que, com criatividade e vontade política, é possível transformar realidades similares.
No Brasil, os avanços são desiguais. Enquanto no Sudeste 86,2% da população é atendida por redes de esgoto, no Norte esse índice é de apenas 22,8%. Essa disparidade reflete uma história de políticas públicas que privilegiam áreas urbanas ricas em detrimento de comunidades periféricas. A falta de regularização fundiária é um dos maiores obstáculos para essas comunidades, impedindo que elas sejam formalmente reconhecidas e incluídas nos planejamentos urbanos e orçamentos governamentais.
A universalização do saneamento básico no Brasil exige mais do que investimentos financeiros. É necessária uma mudança de paradigma que priorize as pessoas mais vulneráveis e reconheça que o saneamento é um direito humano fundamental. A regularização fundiária é um passo essencial para incluir as comunidades invisibilizadas nos planejamentos urbanos. A governança colaborativa, que envolve governos, comunidades e setor privado, pode articular soluções adaptadas às necessidades locais, enquanto modelos inovadores, como as usinas comunitárias de biogás e sistemas descentralizados, podem oferecer alternativas sustentáveis experiências essas presentes em vários países.
Garantir acesso a banheiros, água potável e redes de esgoto não é um luxo, mas uma necessidade básica e um direito humano fundamental. É o primeiro passo para romper o ciclo de exclusão e pobreza que aprisiona milhões de brasileiros em condições de vida degradantes para se dizer o mínimo. O Dia Internacional do Banheiro nos lembra que, mesmo em um país de grandes recursos e potencial, milhões de cidadãos ainda vivem sem dignidade e expostos a doenças previsíveis. Essa realidade é um reflexo da negligência estrutural e da falta de compromisso político para enfrentar uma crise que atinge as camadas mais vulneráveis da população.
Não podemos mais aceitar essa condição como inevitável. É preciso que a sociedade brasileira, em todas as suas esferas, exija ações concretas e urgentes. Governos municipais, estaduais e federal devem assumir a responsabilidade de implementar políticas públicas com prazos e metas claros, assegurando investimentos em saneamento básico e infraestrutura. Esse esforço deve incluir a regularização fundiária em moldes e formas não convencionais das comunidades invisibilizadas, priorizando soluções técnicas e inovadoras adaptadas às suas realidades específicas.
É papel de cada cidadão cobrar dos seus representantes eleitos o compromisso com políticas que coloquem os mais vulneráveis no centro das decisões. Precisamos de lideranças comprometidas, capazes de articular recursos e implementar mudanças que garantam a dignidade de todos. Não se trata de um problema de ideológico em que uns estão contra os outros. O futuro de um país começa pelo básico: cuidar da saúde, do ambiente e da dignidade de sua gente. Ignorar essa urgência é perpetuar a desigualdade; enfrentá-la é reafirmar que um Brasil mais justo e humano é possível. O tempo de agir é agora.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.