“As munições e a produção de defesa dos EUA ajudam a Ucrânia, no lugar de dissuadir a agressão chinesa no Indo-Pacífico”, escreveu Michael Waltz na The Economist, às vésperas do triunfo de Trump. Sua indicação para conselheiro de Segurança Nacional do presidente eleito provoca calafrios em Kiev. A política externa do novo governo americano tem rumo — e a nova bússola aponta uma inversão de curso na Ucrânia.
O artigo de Waltz, em coautoria com Matthew Kroenig, é uma crítica à dispersão dos recursos estratégicos da superpotência na Ucrânia e no Oriente Médio. Os EUA, diagnostica com razão, já não exercem a hegemonia global de que usufruíram na hora da implosão da URSS e, de modo alarmista, sustenta que a China está no limiar de ultrapassar o poderio americano. Conclui, dessas premissas, que é preciso interpretar a rivalidade com a potência asiática como uma nova Guerra Fria, concentrando recursos na contenção da China.
Na campanha eleitoral, Trump alegou que a Rússia não invadiria a Ucrânia se ele estivesse na Casa Branca. Os autores oferecem o que passaria como uma base teórica para a bazófia do presidente eleito, atribuindo a guerra na Europa às demonstrações de fraqueza e vacilações do governo Biden. O remédio deles: uma célere paz cartaginesa.
Roma e Cartago travaram três guerras entre 264 e 146 a.C. A segunda derrota cartaginesa produziu um tratado draconiano, firmado em 201 a.C. Cartago perdeu suas colônias, pagou vultosa indenização, desmilitarizou-se e foi proibida de ir à guerra sem autorização romana.
São, em linhas gerais, as exigências de Putin na sua guerra imperial: além da anexação de no mínimo um quinto da Ucrânia, almeja reduzir-lhe o poder militar a quase nada e obter sua neutralização, vetando-lhe o ingresso na União Europeia e na Otan. A China, com ativo apoio do governo brasileiro, desenha uma proposta de paz nesses moldes, formulando-a por meio de senhas diplomáticas facilmente decifráveis.
Cartago dobrou-se à paz devastadora após uma derrota decisiva no campo de batalha. A Rússia tem a iniciativa em todo o extenso arco do front de guerra, mas nada sugere um próximo colapso militar ucraniano. Contudo, a Ucrânia depende de um fluxo regular de ajuda militar externa, especialmente dos EUA. A paz cartaginesa emanaria da interrupção desse fluxo — ou seja, na prática, da vontade de Trump e do Congresso dominado pelos republicanos.
“Terminar a guerra e parar a matança” – a meta proclamada por Trump parece, na superfície, bem razoável. A invasão já matou cerca de 80 mil soldados ucranianos (algo como o dobro disso entre as forças russas) e mais de 12 mil civis. A Ucrânia poderia prosperar mesmo amputada territorialmente, a exemplo da Finlândia no pós-guerra. Contudo, desmilitarizada, fora da Otan e da UE, ficaria indefesa diante da próxima invasão russa.
Putin escreveu que a Ucrânia não tem direito à soberania: deve ser parte da Grande Rússia. A terceira Guerra Púnica começou quando Cartago tentou defender-se de um ataque do reino da Numídia, o que serviu como pretexto para a invasão romana encerrada pela destruição da cidade e a escravização de seus habitantes. A paz cartaginesa pregada pelos santarrões “pacifistas” anunciaria mais uma guerra — e mais matança.
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