Moisés Spilere, 35, percebeu para onde a conversa ia, mas a deixou seguir. Não era a primeira vez que ouvia algo parecido. Irritou-se ao escutar o interlocutor dizer desejar “preservar” a imagem do clube.
Preservar do quê?, foi o que pensou na hora.
“Se você acha que o clube deve ser preservado é por acreditar que eu ser presidente é um problema”, respondeu.
“Percebi uma fala homofóbica empacotada como preocupação e fiquei indignado. Não gostei e também falei que aquilo era problema de aceitação daquela pessoa”, explicou ele à Folha, ao se recordar da discussão.
Sua presença como mandatário do Caravaggio, pequeno time da segunda divisão de Santa Catarina, não deveria chamar tanto a atenção. Ele era torcedor desde os tempos em que a equipe ganhava tudo na várzea do sul do estado. Economista formado na Universidade Federal de Santa Catarina e diretor de empresa familiar de metalurgia, tem perfil de gestão que cairia bem no futebol.
A “preocupação com a imagem” é por Moisés Spilere ser o primeiro presidente declaradamente gay de um clube de futebol profissional no Brasil.
Como vice-presidente entre 2021 e 2022, ele fez parte do processo da profissionalização do Caravaggio, um dos times amadores mais vencedoras do sul de Santa Catarina. No primeiro ano na terceira divisão do estado, conseguiu o acesso. O mesmo grupo de diretores decidiu que ele seria presidente a partir de janeiro de 2023.
Sua orientação sexual nunca foi um problema, afirma. Nem para sua família nem para os amigos. Não era assunto sequer na pequena Nova Veneza, cidade de 13 mil habitantes onde está o clube. Mas quando ele chegou à Presidência, alguns apoiadores da agremiação, possíveis patrocinadores, demonstraram preocupação. De novo, a questão da imagem.
“Sempre tentei atuar de forma educativa quando ouvia alguma coisa. Claro que o confronto acontece em algum momento porque ninguém tem paciência de explicar coisas básicas o tempo todo. Depois que eu me tornei mais conhecido, que alguns canais famosos da internet falaram sobre mim, as coisas se tornaram um pouco mais problemáticas. Eu não quero que minha imagem fique atrelada ao clube, que é comunitário, não tem dono”, completa.
Moisés sempre gostou muito de futebol, apesar de opinar que meninos gays não costumam ter essa preferência. Quando descobriu, na escolinha do próprio Caravaggio, que não tinha talento para jogar, imaginou que seria apenas mais um torcedor. Não apenas da equipe de sua terra natal, mas da vizinha Criciúma, o outro time do qual é sócio. Não só ele, como boa parte de Nova Veneza.
Quando se mudou para Florianópolis para fazer faculdade, ele jurou, de brincadeira, que um dia voltaria para ser prefeito. O consenso era que poderia ser um bom gestor de recursos públicos por ter fama de pão-duro. Isso também ajuda como dirigente esportivo, ainda mais de uma agremiação que sonha grande.
“Nós não temos endividamento. O primeiro desejo é subir para a Série A do Catarinense. Precisamos de obras no estádio, aumentar a capacidade, resolver a iluminação e trocar o gramado. Acho que nos próximos dois meses vamos conseguir tudo isso”, explica.
Para os padrões da segunda divisão estadual, o Caravaggio é um ponto fora da curva. A média de público no ano passado foi de cerca de mil pessoas. O número dos rivais gira em torno de 300 por jogo. O clube tem um quadro associativo com cerca de 500 pessoas pagantes.
“Por que não podemos participar do futuro de uma Série D do Brasileiro? Se chegarmos à Copa do Brasil, mudamos de patamar”, declara, citando a competição que melhor paga aos times pequenos.
Spilere ressalta o trabalho comunitário que lidera à frente do Caravaggio: a entrega de cestas básicas para a comunidade carente, as vagas na escolinha de futebol. A população pode usar a estrutura física: ginásio poliesportivo, quadras de futebol de areia e de futebol de 7. Há também as campanhas de arrecadação de brinquedos no Dia das Crianças e no Natal.
É uma maneira de retribuir porque ser da comunidade LGBTQIA+ não apaga seus privilégios, acredita.
“Esta é uma região em que ser branco e empresário ajuda a ocupar a Presidência de um clube. Já me disseram que se eu fosse preto e pobre, não chegaria. É verdade. Reconheço isso e tento dar um pouco para a comunidade.”
Com a segunda divisão de Santa Catarina marcada para começar em 28 de maio, Moisés Spilere está pronto para ouvir comentários homofóbicos. Serão os mesmos que já escutou outras vezes. Algumas vezes, de forma descarada. Em outras, travestida de preocupação com a imagem do Caravaggio.
Ele assegura estar pronto.
Spilere sabe não é fácil estar na posição atual, em um clube que o nome é homenagem a Nossa Senhora de Caravaggio, santa de devoção dos italianos que fundaram o município. Foi construída uma capela para receber a imagem trazida pelos imigrantes. O local se transformou em santuário, hoje uma das maiores atrações de Nova Veneza. Fica ao lado do Estádio da Montanha, casa do clube.
O uniforme do Caravaggio tem, ao lado do escudo, imagem da santa.
“Esta é uma cidade muito católica”, constata Spilere.
E ele nem precisa ser provocado para lembrar de que o time de um município tão religioso tem um presidente gay.
“Olha a ironia…”