Em um país de legislação tributária caótica como o Brasil, para muita gente pode soar agradável a proposta de um regime de alíquota única de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) para produtos e serviços, em todos os setores, substituindo ICMS, PIS/Cofins, IPI e ISS.
O Ministério da Fazenda vem defendendo uma alíquota única de 25% nessa fusão de tributos federais, estaduais e municipais, distribuídos em 9% para o governo federal, 14% para os estados e 2% para os municípios. Um tratamento igual, independentemente de o tributo incidir sobre arroz, feijão, carne, corte de cabelo, ingresso de show, compra de smartphone ou carro.
Essa simplificação extrema, contudo, esconde armadilhas para a economia brasileira e enfrenta sérias resistências no Congresso.
Na maioria dos países que adotam o IVA, notadamente na Europa, onde o IVA médio é de 19%, há várias faixas de cobrança, entre 5% e 27%.
Uma alíquota uniforme, indistinta, além de onerar o setor de serviços, que não tem elos na cadeia para distribuir o imposto, atinge em cheio a agropecuária, segmento mais competitivo do país e que há décadas têm gerado sucessivos superávits comerciais. Insumos agrícolas hoje com desoneração de impostos – como fertilizantes, sementes e defensivos químicos – passariam a pagar alíquota de 25%.
Estudo da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), ainda não tornado público, apurou que para produtores de arroz de Camaquã (RS) o aumento de custos será de 13%. E a rentabilidade final cairá 65%. Produtores de café de Minas Gerais teriam 19% de aumento de custo e diminuição de 36% na renda, caso o imposto não seja repassado para os outros elos da cadeia.
Tomador de preço, agro pode sofrer maior impacto na reforma tributária
“Nós não somos formadores de preço, somos tomadores de preço. A cotação da soja é definida lá em Chicago. Não é porque o preço subiu aqui que vão me pagar mais. Serve para a soja, milho, açúcar, boi e café”, destaca Renato Conchon, coordenador econômico da CNA.
Em relação a produtos agrícolas voltados ao mercado doméstico, como tomate, abobrinha e mandioca, por exemplo, a alíquota cheia pressionaria a inflação. “O fato é que haverá mais recolhimento de imposto, mesmo que os produtores possam se creditar e passar o custo adiante. Será que o consumidor tem renda para um aumento no custo de vida de 25%?”, questiona Conchon.
Um dos acenos do governo para equilibrar o peso do novo imposto sobre alguns setores mais prejudicados, e sobre a população de baixa renda, seria um sistema de devolução de dinheiro, o cashback. Uma engenharia que, dado o elevado índice de informalidade no país, pode ter difícil aplicação.
“Isso funciona na Suécia, Dinamarca, Finlândia, mas, no Brasil, com tanta informalidade, não consigo enxergar como vá funcionar. O crédito presumido do arroz e do feijão leva hoje em média oito anos para ser recuperado. Na cadeia primária, num país como o Brasil, a gente precisa ter a diferenciação de alíquota para poder sobreviver”, afirma o deputado Pedro Lupion, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).
Lupion tem dito que o governo sabe que a bancada “entrega 300 votos no plenário da Câmara”, e, por isso, os pleitos do agronegócio não poderão ser simplesmente ignorados.
Reforma ampla ou simplificação dos impostos?
Atualmente um grupo de trabalho da Câmara tenta costurar um novo texto de reforma tributária com base nas PECs 45/2019 e 110/2019, que estão em linha com a ideia do governo de implantação do Imposto sobre Valor Agregado no país.
Tributaristas alertam que, no afã de fazer uma grande reforma estrutural numa só tacada, o governo corre o risco de quebrar setores vitais.
“Isso pode ser nefasto. No agronegócio você tem uma quantidade baixa de insumos, comparada com o valor de venda que ele possui. E o contribuinte vai pagar uma alíquota cheia, sem tomada de muitos créditos”, diz o professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo, Heleno Torres.
“Também está dito que os contribuintes do Simples não terão direito a crédito, e a gente sabe que a maioria dos serviços no campo é prestada por pequenas empresas. Imagine todos esses serviços e atividades sem direito a crédito? No início de uma tributação dessas, o agro certamente será um dos que mais sofrerá”, avalia Torres.
Para ele, faria mais sentido simplificar o emaranhado legal atualmente em vigor, por meio de aprovação de leis complementares. Com especial atenção ao ICMS, que seria o pior dos impostos, com dezenas de regras estaduais que não conversam entre si. Ele defende uma reforma tributária infraconstitucional.
“Mexer na lei dos tributos agora, ajustá-los a essas normas técnicas, melhorar a tributação do ISS, ICMS, PIS e Cofins. Separa os regimes em poucos regimes diferenciados, e pronto, já temos um sistema para rodar, para tirar a economia do limbo. Daí com esse novo modelo funcionando, depois dessa reforma de emergência, passamos para uma reforma estrutural. A indústria está sofrendo muito, não aguenta mais dois ou três anos com esse sistema maluco que está aí”, destaca Torres.
Em relação à agropecuária, há riscos envolvendo a segurança jurídica e a credibilidade do país. O agro brasileiro tem recebido recursos de fundos de investimentos, dentro de uma base de regimes e isenções, com expectativa de retorno de dez anos ou mais.
“Se mudar abruptamente, o sujeito vai ter prejuízo. A reforma tributária precisa ser acompanhada por lupa nos setores de carnes, laticínio, suco de laranja, soja e milho. São culturas de frente de nossa economia e que precisam de muita atenção”, alerta o docente da USP, que é mestre em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Roma.
Cuidado necessário para não “tributar a fome”
A defesa de um tratamento tributário diferenciado para a agricultura está amparada pelo Artigo 187 da Constituição Federal, que diz que o Estado deve fomentar a cadeia produtiva de alimentos.
“Não é por privilégio, esperteza ou lobby habilidoso. É a Constituição que diz que o segmento econômico do agro é fundamental, e não se trata de o Estado intervir, mas de incentivar”, pondera Fabio Calcini, professor de Direito Tributário em Ribeirão Preto e advogado do escritório Brasil Salomão e Mattes.
Para o tributarista, as peculiaridades justificam uma tributação reduzida. “O que o agro produz está na base da vida das pessoas, é óbvio que o Estado não deve tributar. Seria o mesmo que tributar a fome”, enfatiza.
O discurso recorrente, principalmente em setores esquerdistas, de que o agronegócio é subtributado, partiria de premissas equivocadas. São cadeias extensas com incidência de vários tributos como ICMS, ISS, Funrural, IPI e Imposto de Renda.
“Pode não ser tributação do produto primário em si, mas se olhar a conjuntura, a agropecuária contribui muito para a geração de renda e riqueza. Quantos estados e cidades que não eram nada há 20 ou 30 anos atrás e, onde entrou a produção rural, essas sociedades se desenvolveram muito? É só ver no Mato Grosso, no Paraná, em Goiás. A carga reduzida para o setor é plenamente justificável”, avalia Calcini.
Senador Oriovisto defende reforma tributária proposta pelo “Simplifica Já”
A aprovação do IVA nos moldes propostos pelo governo deverá beneficiar a indústria, que atualmente sofre com o efeito cascata da cumulatividade de impostos. Na análise do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), haverá um deslocamento da cobrança de impostos para o agro e os serviços, que não têm tantos insumos para se creditarem na hora de pagar o IVA.
“O que dá crédito para o agricultor quando ele for pagar o IVA? Semente? Mas você compra um saco de semente de soja e, quando você planta, colhe 80 sacos. O sol não dá nota fiscal, a chuva não dá nota fiscal, a terra não dá nota fiscal”, argumenta.
O raciocínio se estende para os serviços. “É o que mais emprega na economia inteira, e hoje paga quase 9%. Vai passar para 25%. Vai triplicar. Ah, mas vão poder descontar créditos. Que créditos tem uma universidade, qual é o insumo de uma escola? Giz, eletricidade? É muito pouco, quase nada. O grosso é mão de obra, que não dá crédito”, diz Guimarães.
Como alternativa para uma reforma tributária fadada a virar uma “colcha de retalhos”, o senador apresentou outra emenda constitucional, a PEC 46/2022, que encampa as ideias do movimento Simplifica Já. Basicamente, ela unifica as 27 legislações de ICMS e as mais de 5 mil leis municipais do Imposto Sobre Serviços (ISS) em apenas duas leis nacionais.
O cálculo do imposto do ICMS, por exemplo, não seria mais feito pelo próprio contribuinte, mas por um sistema automatizado, dando mais segurança jurídica e confiabilidade às operações.
“Atualmente, é você que tem que calcular o ICMS. Depois de quatro anos vem a Receita e diz que você pagou errado, e que terá de pagar a diferença, com multa e correção monetária. Estamos prevendo um sistema único, simples, enxuto, que não transfere carga tributária de um setor para outro e não tira a independência dos impostos federados”, argumenta.
Enxugar gastos em vez de aumentar arrecadação
O senador Oriovisto aponta que sua proposta teve amplo apoio em encontro com prefeitos, mas o governo federal, por enquanto, só trabalha com as perspectivas do IVA previstas nas PECs 45 e 110, que estão sendo analisadas por um grupo de trabalho na Câmara.
“O governo quer essa reforma porque vai aumentar a arrecadação uma barbaridade. Nós já pagamos 33% do PIB, já trabalhamos mais de quatro meses por ano só para pagar imposto. O governo tem é que que fazer reforma administrativa e enxugar gastos”, insiste o senador.
Lupion, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, vê com bons olhos a proposta de Oriovisto Guimarães e lamenta que o governo esteja olhando apenas na outra direção. “O problema é que o Bernard Appy [secretário extraordinário da Reforma Tributária] quer tratar das PECs 45 e 110, e nem cogita a PEC 46 e a PEC 7, do deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança”, diz.
Qual seria um ponto inegociável para a maioria dos 342 integrantes da bancada da agropecuária no Congresso? “A alíquota diferenciada”, responde Lupion. “Em cerca de 30 países em que estudamos a fórmula do IVA, só três ou quatro não têm alíquotas diferenciadas, e são países importadores, como a Dinamarca e a Estônia. Num país produtivo como o Brasil, que tem dentro da cadeia primária de combustível até arroz e feijão, passando por diversas culturas com suas particularidades, a gente precisa ter essa diferença de alíquota para poder sobreviver”, diz o deputado.
Preocupação com exportações e cooperativas
Outra luz de alerta se acendeu em relação à taxação das exportações de commodities. “Apesar de o governo negar veementemente, o precedente recente do petróleo [cujas exportações serão taxadas em 9,2% por quatro meses] fez com que a gente ficasse assustado. Isso é inegociável também”, diz Lupion.
“Por fim, nos preocupam muito as cooperativas. Se houver incidência de 25% no consumo, distribuído por toda a cadeia, haveria uma bitributação. A cooperativa pagaria e o cooperado também. São pontos em que temos muito receio de perder completamente a competitividade e a condição de renda do produtor rural, que hoje tem uma margem de lucro muito pequena”, conclui o parlamentar.
Governo sabe que texto da reforma tributária será bastante modificado
Apesar de a proposta do governo ter se iniciado sem nenhuma exceção, o próprio secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, já afirmou que acabará havendo “algumas excepcionalidades”, seja por meio de diferenciais de alíquota, isenção, mudanças nas regras de creditamento e devolução de imposto para famílias de baixa renda e o setor de educação.
Para o cientista político Lucas Fernandes, trata-se de um jogo político parecido com o da PEC da Transição, conhecida como PEC fura-teto, quando o então presidente eleito Lula pleiteava deixar o Bolsa Família fora do teto de gastos por quatro anos, mas acabou se contentando com apenas um ano de excepcionalidade.
“Muitas das negociações a gente só deve ver tomando forma depois de o grupo de trabalho apresentar o relatório sugerindo mudanças. A gente já começa a escutar a ideia do Simples Rural, e que os setores de saúde, transporte público e educação também teriam também alíquotas diferenciadas. O governo tem clareza que o texto vai ser bastante enxugado”, pondera Fernandes.
A mesma lógica, avalia ele, se aplica ao calendário previsto pelo governo para aprovação, que deve demorar bem mais que seis meses ou até o fim do ano. Para aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) é necessário votação em dois turnos, na Câmara e no Senado, e com maioria de três quintos.