Precisei engolir seco enquanto a família se derramava em lágrimas. Era a primeira vez que os parentes de Glória Licínio, morta a facadas por um vizinho, falavam sobre a tragédia que devastou a vida deles. O marido, José, ainda tentava se recuperar do baque. Além das marcas pelo corpo, já que também foi atacado ao tentar salvar a esposa, era preciso aprender a lidar com as cicatrizes da alma.
“Nosso casamento foi lindo”, disse o viúvo com a voz embargada. A cada lembrança, um nó na garganta. Glória e José se conheciam desde a infância e passaram mais de 30 anos sem se ver. Quando, finalmente, se reencontraram, decidiram construir uma vida juntos. A união durou dois anos. Durou até Geraldo Cordeiro, dono de um bar, interromper os sonhos do casal.
Glória morreu porque reclamou do som alto que vinha da adega ao lado da casa dela, em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo. A enfermeira, tão acostumada a salvar vidas, não conseguiu proteger a dela. Perdeu o direito de viver para a intolerância. Geraldo atacou a mulher com uma faca porque não gostou de ser filmado por ela. O vídeo da balbúrdia no bar seria enviado para as autoridades responsáveis.
Antes de entrevistar a família, dias antes, fiquei cara a cara com o assassino. (Assista aqui) Geraldo não escondeu o rosto. Encarou minhas perguntas e confessou ter matado Glória. “Foi por um motivo banal”, disse ele, enquanto era levado para a cela. O dono do bar foi capturado pelos policiais doze horas após o crime. “Era questão de honra”, disse o delegado.
A entrevista com o marido, sobrevivente, a filha e a irmã da enfermeira foi repleta de emoção. José, por vezes, olhava fixamente pro nada. Antes de começar a gravar, enquanto arrumávamos o cenário, ele baixava a cabeça e mantinha as mãos entrelaçadas. Parecia reviver um filme de terror na cabeça.
Se conversar com o homem que viu a esposa morrer já foi, demasiadamente, pesado, imagine só falar com a filha, que um dia antes da morte da mãe, tinha feito aniversário. Ysabela chorava do começo ao fim da entrevista. Raramente, me olhava nos olhos. Sentia-se mais confortável em desviar o olhar pra baixo. Encarar a realidade já era difícil demais. Ter de contar aquilo tudo em frente a uma câmera já era demais.
Ysabela falava, mexia nas mãos e deixava as lágrimas correrem. “Eu estava com a minha mãe uma hora e meia antes de ela morrer. A gente ia se encontrar no dia seguinte porque foi meu aniversário no domingo e não conseguimos nos ver. Não deu tempo. Tiraram minha mãe de mim antes”, desabafou.
Cada palavra da filha era um golpe em mim também. Por um minuto, me coloquei no lugar dela. Não quis me imaginar muito nessa situação. A sensação de enfrentar essa dor é desesperadora. Eu, no lugar dela, provavelmente não daria entrevista alguma. Não aceitaria falar com repórter nenhum.
Como jornalista, é preciso saber conduzir a conversa. É necessário ter empatia, respeito e lidar com a dor do outro. Contar uma história exige muito mais do que técnica. Às vezes, tem que ter coração. Precisei, ao fim da entrevista, ir ao banheiro e respirar fundo. Era um clima pesado, de revolta, tristeza, raiva.
Ysabela me confidenciou que não estava preparada para perdoar o assassino da mãe, mas que Glória, certamente, gostaria que essa fosse sua decisão. “O que eu estou sentindo não gosto nem de falar porque a minha mãe não ia gostar. Ela, com certeza, ia querer que eu perdoasse essa pessoa”.
Quem poderia julgar uma jovem incapaz de perdoar o homem que a tirou do colo da mãe? Eu não seria. Primeiro, porque não me cabe fazer qualquer juízo de valor. Segundo, porque estando na pele dela, certamente, agiria da mesma forma. O jornalismo me aproxima de histórias que me fazem refletir sobre como eu encararia determinadas situações. Reconheço que não teria estrutura para mais da metade delas. Nem sempre uma entrevista é apenas uma entrevista. Quase sempre, experiências assim trazem um profundo autoconhecimento. Meus entrevistados não sabem, mas muitos deles me ajudam a compreender o mundo. O meu mundo.
Exclusivo: marido de enfermeira morta após reclamar de barulho em adega fala com o Balanço Geral