O TCU (Tribunal de Contas da União) cobrou que a fiscalização do órgão traga “casos de sucesso” em licitações de pavimentação da estatal Codevasf, que têm sido marcadas por suspeitas de corrupção, cartel e irregularidades.
A determinação consta de voto do ministro Jorge Oliveira, indicado à corte pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em julgamento de processo no qual os auditores do TCU mostram exatamente o contrário, ao indicar irregularidades em vários casos e situações em que a estatal colocou asfalto até em ruas que já estavam pavimentadas. A orientação foi aprovada pelo colegiado do tribunal.
O julgamento do TCU, realizado em fevereiro, assegura a continuidade no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de um modelo afrouxado de licitações e obras da Codevasf que tem brechas para a corrupção, desvios e superfaturamentos, segundo os fiscais do tribunal.
Essa decisão do mês passado também marca mais um episódio do embate entre a área técnica do TCU e os ministros, que chegam à corte por indicação política.
As divergências vêm desde meados de 2021, quando o colegiado deu aval para as manobras licitatórias apesar de recomendação em sentido contrário dos auditores.
Durante a gestão Bolsonaro, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) foi entregue ao centrão em troca de apoio, e pipocaram casos de suspeitas de corrupção em obras de pavimentação feitas por meio de modelo frouxo, que permite licitações sem projetos específicos para as obras.
Atualmente, contratos guarda-chuva são realizados para abrigar emendas parlamentares, em geral destinadas por critérios exclusivamente políticos a redutos eleitorais. Pelo modelo, obras de pavimentação podem ser orçadas como se fossem um serviço de colocação de piso em uma casa, com a cobrança por metro quadrado.
O relator do acórdão citado pela reportagem, Jorge Oliveira, por exemplo, era ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República de Bolsonaro antes de ser indicado pelo presidente ao TCU.
Conforme a Folha mostrou, a escolha de Oliveira abriu espaço para que o governo conseguisse criar consenso no órgão a favor de projetos de infraestrutura, regras do leilão do 5G, privatização da Eletrobras e até das contas de Bolsonaro.
Apesar das observações do setor técnico sobre as obras de pavimentação, uma das determinações do julgamento relatado por Oliveira é que a equipe técnica “realize fiscalização voltada à avaliação geral da metodologia de contratação de obras de pavimentação por meio da realização de sistema de registros de preços, coletando não apenas as situações-problema detectadas, mas também os casos de sucesso”.
O acórdão (documento com os votos e o resultado do julgamento) ainda traz uma cobrança de informações sobre os recursos executados por meio desse sistema e comparativo com sistemática distinta.
Como o TCU indicou mudanças no ano passado, na visão do órgão, ainda não existe “densidade suficiente de certames que possibilite a realização do pertinente estudo”, o que poderia acontecer no segundo semestre deste ano.
Com isso, por ora, esse modelo de licitação deve prosseguir com anuência da corte, embora individualmente casos possam ser sanados preventivamente se for constatada necessidade.
A reportagem procurou o TCU e Jorge Oliveira, mas nem a corte nem o ministro se manifestaram.
Apesar do pedido para buscar bons exemplos, o documento também chamou a atenção para ponto que considera grave, que consiste na colocação de pavimentação sobre locais onde já há esse tipo de estrutura.
“Conforme destacou a unidade técnica, em um cenário de carência é reprovável a existência desse desperdício, caracterizado pela repavimentação de vias que já receberam prévia atenção, com a preterição da abertura de obras em novas frentes, sem a mínima motivação do ato administrativo”, afirmou.
O caso é relativo a pregão de 2020 para pavimentação de diversos municípios do Rio Grande do Norte, na qual a fiscalização constatou a remoção da pavimentação existente, contrariando critérios técnicos estabelecidos.
O acórdão data de fevereiro, quando novos problemas neste tipo de licitação continuam vindo à tona. No mesmo mês, a CGU (Controladoria-Geral da União) divulgou fiscalizações sobre contratos do tipo que flagraram um combo de irregularidades em três estados, incluindo asfalto que esfarela como farofa e forma crateras, além de maquiagem na prestação de contas e indícios de superfaturamento.
Em outubro o ministro Jorge Oliveira também foi o relator de um caso em houve embate com a área técnica do tribunal.
Foi um caso que envolveu emendas de relator de autoria do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), no qual os auditores do TCU apontaram direcionamento pelo congressista à empreiteira Engefort, suspeita de liderar um cartel na Codevasf.
No ofício que enviou à estatal no qual escolheu as cidades a serem beneficiadas e o tipo de pavimento que elas receberiam, Alcolumbre anexou até uma planilha com o timbre da construtora.
Nesse caso os auditores viram também uma tentativa de desvio de material pela empreiteira, que buscou cobrar pela colocação de brita em uma obra sem que o material tivesse sido realmente usado, além de indícios de superfaturamento e superdimensionamento.
Já o relator do caso, o ministro Oliveira, não viu favorecimento de Alcolumbre à Engefort.
Ele acatou o argumento de que a construtora havia ganhado todas as licitações de diferentes tipos de pavimentação no Amapá, e assim de qualquer forma levaria os contratos no estado.
Quanto ao fato de a Engefort ter cobrado por material não usado, Oliveira considerou ter havido apenas uma “falha” que foi admitida e corrigida pela empreiteira. O voto de Oliveira foi seguido pelo colegiado e o caso foi arquivado.
Apesar dos problemas, a direção da Codevasf, hoje a cargo do engenheiro Marcelo Moreira, também deve ser mantida pela gestão Lula. Moreira foi indicado pelo deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA) para presidir a empresa em 2019, no início do governo Bolsonaro, e deve seguir no cargo com a chancela do presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL) e do senador Davi Alcolumbre.
A Codevasf, ao ser questionada sobre as licitações, afirma que elas ocorrem no âmbito de projetos e ações de desenvolvimento regional, com emprego de métodos que proporcionam transparência e economia de recursos à administração.
As suspeitas de corrupção, formação de cartel, superfaturamento, compra de voto e de outras ilegalidades envolvendo levaram à abertura de várias frentes de investigação.
A maior parte teve origem ou foram influenciadas por revelações da Folha. Uma das publicações levou o TCU a abrir uma investigação que apurou indícios de formação de um cartel para fraudar licitações que chegam a R$ 1 bilhão.
Em outubro, o TCU comunicou a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a CGU sobre as evidências, “a fim de contribuir com apurações já em curso e/ou subsidiar novas linhas de investigação”.