Quando a árbitra Ingrede Santos apitou o fim do jogo, o público de cerca de 300 pessoas se levantou e aplaudiu as jogadoras do Ceará na manhã de sábado (4). O placar eletrônico do estádio Presidente Vargas, na região central de Fortaleza, apontava a derrota do time da casa por 2 a 0 para o São Paulo.
O contexto da partida, válida pela primeira divisão do Campeonato Brasileiro feminino de futebol, explica o apoio da torcida mesmo diante de um revés.
No dia 25 de fevereiro, o Ceará perdeu por incríveis 14 a 0 para o Corinthians, na estreia da competição, em Mogi das Cruzes (SP). O choro da goleira Ingrid no gramado repercutiu dentro e fora do meio do futebol e escancarou a falta de investimento do clube na equipe feminina um ano depois de subir da segunda para a primeira divisão.
Vinte dias antes, pela SuperCopa, o Ceará já tinha sofrido outra goleada, de 10 a 0, contra o Flamengo, no Rio.
As goleadas mostravam o oposto do clima de vitória de 2022. Em 17 de setembro, o time feminino do Ceará foi campeão da segunda divisão. Mas logo depois, em 9 de novembro, o time masculino do Ceará foi rebaixado. Vinte dias depois, a direção do clube começou a demitir profissionais de várias áreas, incluindo as jogadoras do feminino.
Do fim de novembro até meados de dezembro o Ceará demitiu o técnico do feminino, Erivelton Viana, e 20 jogadoras.
Sobraram quatro profissionais. O restante do time foi formado por meninas de 14 a 17 anos. A equipe jovem e com pouca experiência encarou times formados por atletas da seleção brasileira, que em julho disputará a Copa do Mundo na Austrália e na Nova Zelândia.
“A minha neta foi uma das que ficou. Ela está no Ceará desde os 12 anos, ama esse clube. Mas foi uma situação triste, para todas. Mas, ao que parece, a diretoria entendeu e trouxe alguns reforços, hoje o time já foi bem melhor, competiu”, disse o aposentado Joaquim Severiano Soares, 63, avô da zagueira e capitã Rebeca, 19, que acompanhava o jogo da neta no Presidente Vargas.
“Tem que aplaudir as garotas, mostraram garra, vontade. Honraram a camisa do Vozão”, disse Carlos Aparecido Ferreira, 42, que levou o filho Mariano, 6, para ver o jogo na manhã de sábado com algumas nuvens no céu de Fortaleza.
A direção do clube orientou as jogadoras a não darem entrevistas. Nas redes sociais, as manifestações das atletas evitam críticas.
“Não importa o resultado, o placar ou quem ganhou. Mas que a gente possa sair de cabeça para cima e dizer que demos o nosso melhor”, escreveu a atacante Amália, 20, após os 14 a 0 para o Corinthians.
“Paciência de Jó e fé de Abraão”, postou Rebeca depois dos 10 a 0 para o Flamengo.
A repercussão negativa dos 24 gols tomados em dois jogos no ano fez a diretoria do Ceará se mexer: houve mudança no comando técnico, com a entrada de David Lopes, que era o treinador do masculino sub-14.
Felipe Soares, que estava na base feminina em 2022 e comandou as meninas nas duas goleadas sofridas, permaneceu na comissão como auxiliar de Lopes.
Sete jogadoras profissionais foram contratadas, algumas delas com experiência na elite nacional, e isso refletiu no desempenho em campo: a derrota para o São Paulo foi por um placar normal, e o Ceará criou chances de gol. Teve até um anulado corretamente por impedimento, no fim do primeiro tempo, marcado por Ester.
Ao fim do confronto, as jogadoras se abraçaram e, de mãos dadas, saudaram os torcedores que as aplaudiam.
“A oportunidade foi dada a elas de participarem de uma competição nacional, de trabalharem. Tem o impacto dos gols e do choro, mas as atletas estão felizes com a oportunidade. Estamos alinhando departamento psicológico e de assistência social da base do masculino para o feminino, mas não tem guerra dentro, tem trabalho”, disse Eduardo Arruda, diretor administrativo do Ceará e responsável pelo departamento feminino.
Após duas rodadas, a equipe cearense é a lanterna do Brasileirão, com duas derrotas, 16 gols sofridos e nenhum marcado. O penúltimo colocado é o Real Ariquemes, de Rondônia, que levou 15 gols. Na próxima rodada, o Ceará encara o Bahia.
Rebaixamento do masculino
Depois de cinco anos na Série A do Brasileiro masculino, o Ceará foi rebaixado em 2022 e viu seu orçamento para 2023 despencar.
No ano passado, o clube previu faturamento de R$ 163 milhões, o maior de sua história de 108 anos. Com a queda de divisão, todas as receitas, mas principalmente as de direito de transmissão, diminuíram, e o orçamento para esse ano é de R$ 89 milhões, o menor desde 2019.
Em 2022 o investimento previsto para o futebol feminino já era pequeno, cerca de R$ 1,6 milhão, mas serviu para montar um time competitivo que deu conta da Série A2, e o acesso aconteceu. O orçamento de 2023, aprovado na última sexta-feira (3) pelo Conselho Deliberativo do clube, não especifica o valor programado para o departamento profissional feminino, mas a ideia era gastar muito menos do que no ano anterior.
Após a derrota de 10 a 0 para o Flamengo pela Supercopa, torneio que inicia a temporada do futebol feminino no Brasil, a diretoria do Ceará cogitou acabar com a equipe e desistir do Brasileiro da Série A1, apurou a Folha.
A ideia não avançou porque a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) avisou ao clube cearense que a atitude poderia ter consequências até para o time masculino na Série B, com base na regra de licenciamento que obriga associações nas primeiras divisões do masculino a terem equipes femininas.
Havia também outro empecilho, esse financeiro: o Ceará aderiu, em 2015, ao Profut, a lei de responsabilidade fiscal do futebol que prevê o pagamento de dívidas com o governo com juros mais baixos, mas exige contrapartidas. Uma delas é ter uma equipe feminina profissional. O clube poderia ser excluído do Profut.
“Após o fim da temporada, dispensamos algumas atletas e começamos a estudar a parte financeira, mas a situação política do clube atrapalhou o processo no feminino, não houve maldade do clube”, disse Arruda.
A pressão pelo rebaixamento do time masculino fez o presidente Robinson de Castro renunciar ao cargo, em 9 de fevereiro. Um interino foi empossado, Carlos Moraes, mas uma eleição está marcada para 29 de março para a escolha de um novo presidente. Somente os membros do Conselho Deliberativo votarão.