O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem indicado que quer frear um dos principais avanços sociais dos últimos anos no Brasil: a implementação do marco do saneamento, aprovado em julho de 2020 com metas ambiciosas para garantir a universalização do esgoto tratado e da água potável até 2033. Declarações recentes de Rui Costa, ministro da Casa Cvil, revelam a intenção de modificar pontos cruciais da lei, por meio de um novo decreto cuja publicação está prevista para os próximos dias.
As falas de Rui Costa vão ao encontro de uma tendência que o PT já vinha sinalizando desde o fim de 2022, quando o partido deu protagonismo ao deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) na discussão sobre saneamento básico do gabinete de transição.
Boulos é avesso ao marco do saneamento em pontos como a exigência de licitação para firmar contratos, a atuação de uma agência federal para a regulação do setor – como é o caso da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (Ana) – e a ênfase na participação do setor privado para a melhoria dos serviços. Antes do marco, as prefeituras podiam fechar contratos sem licitação com empresas estatais de saneamento, o que favorecia a manutenção de privilégios dessas empresas e o afrouxamento das metas de atendimento à população.
A falta de saneamento básico é uma das principais tragédias sociais do país. No último diagnóstico feito pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), com dados de 2020, 94,1 milhões de brasileiros ainda não tinham acesso a redes de esgoto, e 35 milhões estavam sem água tratada. O quadro é especialmente grave nas regiões Nordeste e Norte.
Entre as causas da persistência desse problema ao longo das décadas estão justamente a falta de metas para as empresas de saneamento, a existência de contratos irregulares e a falta de padronização do corpo regulatório do setor. Em alguns municípios, a concessão é feita a companhias sem capacidade técnica ou econômica comprovada para a prestação dos serviços.
Marco acabou com privilégios de estatais do saneamento e atraiu investimentos
O marco do saneamento tentou resolver os problemas mencionados com uma série de medidas: proibindo contratos sem licitação para empresas de tratamento de água e esgoto; estabelecendo metas de desempenho para essas empresas; atribuindo a uma agência federal, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (Ana), o papel de regulação do setor; criando blocos regionais para a administração do saneamento em vez de municipalizar a questão (em muitos casos, um mesmo rio pode cortar diversos municípios, o que justifica a regionalização do serviço); e estimulando a concorrência entre empresas do setor, sejam elas privadas ou estatais, por meio das licitações.
“O grande mérito do marco é exatamente tentar estabelecer um prazo para que se universalize de fato esse serviço à população”, diz o especialista em saneamento Luiz Firmino, pesquisador do Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura (Ceri) da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Quando você encontra cidades que estão com um prestador de serviço que não tem nenhuma meta, não tem um contrato regular assinado, nenhuma obrigação… Como é que você pode esperar que o saneamento vá avançar nessas condições? O que o marco tenta fazer é acabar com esses casos”.
Outro trunfo do marco, para Firmino, é regionalizar o saneamento em vez de municipalizar a questão. “Primeiro, você tem um problema ambiental: um rio corta um município e passa por mais dois, três ou quatro até chegar ao estuário, por exemplo. Vamos dizer que o município do estuário cumpra sua parte, e os municípios de cima, não. Você vai ter as águas e os rios que passam por aquele município poluídos do mesmo jeito. O conceito de regionalizar leva a olhar forma integrada a questão ambiental e a questão econômica. Quanto mais escala você der ao serviço, melhor. Você otimiza a infraestrutura das estações de tratamento para ter um resultado melhor”, explica.
As medidas têm surtido efeito. O marco atraiu o interesse das empresas em investir no saneamento no Brasil. Em 2022, por exemplo, houve um aumento significativo de 15% nos investimentos. As ideias do novo governo, no entanto, podem ameaçar algumas dessas novidades e afugentar especialmente o setor privado.
Costa já deixou claro algumas vezes, por exemplo, que é contra a regulação dos contratos por uma agência nacional. “A Ana é agência para regular o uso da água em rios federais. Rios estaduais cabem à agência estadual”, afirmou recentemente, segundo a Agência Infra. “Onde é que está definido que uma agência federal de água vai fazer norma de referência de licitação de água ou de esgoto de uma cidade ou de um estado? Onde tem isso? O poder concedente é o município”, acrescentou.
No começo de 2023, Lula revogou dois decretos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que regulamentavam a lei de 2020. Ambos seguiam o mesmo espírito das regras estabelecidas pelo marco. Um deles exigia a comprovação da capacidade financeira das empresas de saneamento; o outro regulamentava alguns requisitos para o acesso a recursos federais nessa área.
Também em janeiro, o governo Lula decidiu sobrepor o papel regulatório da Ana previsto pelo marco, com um decreto que atribui uma função semelhante à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) do Ministério das Cidades. Como explica reportagem da Gazeta do Povo, o decreto contraria o marco do saneamento, que previa esse papel sendo exercido somente pela Ana. No ano passado, quando integrava o gabinete de transição, Boulos já havia afirmado que “é muito prejudicial você ter uma agência reguladora, como a Ana, com superpoderes e sem controle da sociedade”.
Na visão de Firmino, a agência não tem “superpoderes”. “A Ana está fazendo um trabalho muito bom de forma técnica. As normas de referência são sobretudo regras de contrato e regras tarifárias. Há audiências públicas para discutir com a sociedade e com especialistas quais são as melhores regras para cada escopo. A Ana tem uma equipe muito boa e está estruturando um setor de saneamento muito capaz. Ela não vai ter superpoder, porque as agências infranacionais e estaduais permanecem com a sua autonomia total. O que a Ana vai tentar é estabelecer regras mínimas para que todos tenham como se balizar no que é de fato uma boa regulação, uma boa contratação”, comenta.
Para Firmino, uma das vantagens da atuação da Ana é resolver os casos de agências reguladoras que não têm a estrutura adequada para prestar os serviços de saneamento à população. “Há reguladores estaduais com câmaras de saneamento e de política tarifária bem estruturadas, com equipes estudando o assunto. Mas também existem, hoje, reguladores municipais que estão dentro de um pequeno setor da prefeitura sem qualquer estrutura. Então, o objetivo da Anaé criar parâmetros mínimos do que seria adequado. Essas agências sem nenhuma estrutura podem, numa canetada, mudar o valor da tarifa, modificar uma meta preestabelecida… E aí você não tem nenhuma segurança”.
Para justificar a sua aversão ao marco, o governo Lula já alegou a meios de comunicação que quer “destravar os investimentos” na área, e que o formato de regulação por meio de uma agência nacional está “engessando” as empresas e usurpando competências estaduais e municipais.
A reportagem da Gazeta do Povo questionou o Ministério das Cidades sobre a ideia de modificar o marco do saneamento, mas a pasta não havia respondido até o fim da tarde desta terça-feira (21).
Ranking revela profunda desigualdade em tratamento de esgoto no Brasil; marco poderia ajudar a resolvê-la
Na segunda-feira (20), o Instituto Trata Brasil publicou o Ranking do Saneamento 2023, pesquisa anual sobre a situação dos maiores municípios brasileiros em relação ao saneamento básico, em aspectos como o acesso à água potável e o tratamento de esgoto. O ranking pode ser acessado neste link.
A profunda desigualdade entre as regiões Norte e Nordeste e as regiões Sul e Sudeste foi o principal problema observado, especialmente no que se refere ao tratamento do esgoto.
“Há uma desigualdade muito grande do ponto de vista de acesso ao saneamento básico quando a gente olha as diferentes regiões do país”, afirma Luana Pretto, presidente do Trata Brasil.
Segundo ela, a motivação principal dessa grande diferença é a disparidade no nível de investimento. “Quando a gente vê as 20 cidades melhor posicionadas, elas investiram R$ 166 por ano por habitante em saneamento, enquanto as cidades que estão nas piores posições investiram uma média de R$ 55 por ano por habitante. A conclusão a que a gente pode chegar é que sem investimento não há avanço em saneamento básico, seja esse investimento público ou privado”, diz.
Para Luana, o marco do saneamento da forma como está hoje poderia ajudar a resolver essa desigualdade no tratamento do esgoto e no acesso à água potável. “O marco traz algumas métricas, como a necessidade de comprovação de capacidade econômico-financeira. Ele estabelece que tais empresas têm capacidade de universalizar financeiramente tais e tais municípios. Ele joga luz aos dados, para podermos entender qual é o cenário de saneamento em cada uma das regiões. Além disso, ele dá segurança jurídica com as normas de regulamentação sendo editadas por uma agência nacional. Isso traz maior segurança para o aporte de investimentos privados”, comenta.
“A universalização do saneamento não vai acontecer apenas com a empresa pública ou apenas com a empresa privada, mas é importante haver uma união de esforços para que se pense qual é a melhor solução em cada uma das regiões do Brasil”, acrescenta.